
O escritor Jorge Luis Borges, que Francisco conheceu pessoalmente quando era professor de Literatura no Norte da Argentina. Foto: Direitos reservados.
Jorge Mario Bergoglio foi professor de Literatura no Norte da Argentina, em Santa Fé, no Colegio de la Inmaculada Concepción, quando tinha 28 anos. Deve ter sido um notável mestre, como o são, de resto, tantos professores que sabem adequadamente fazer despontar o gosto pela leitura. A tarefa é hoje, entre nós, difícil de cumprir, porque se impõe amestrar os alunos para se saírem bem nos exames. Talvez Jorge Mario Bergoglio não tivesse, portanto, uma vida fácil no nosso sistema de ensino. Pelo menos não disporia de liberdade para ajudar os alunos a trilharem os caminhos que mais os enriquecem.
Na entrevista que concedeu a Antonio Spadaro, director da revista Civiltà Cattolica, o Papa Francisco evocaria a sua experiência docente, que acabou por o fazer conhecer pessoalmente Jorge Luis Borges. O relato é também uma significativa lição de pedagogia.
Bergoglio dava, então, aulas aos alunos dos últimos dois anos do liceu, tendo-os encaminhado para a escrita criativa. “Foi uma coisa um pouco arriscada”, recordou. “Devia fazer de tal modo que os meus alunos estudassem El Cid. Mas os rapazes não gostavam. Pediam-me para ler García Lorca. Então decidi que deveriam estudar El Cid em casa e durante as lições eu trataria os autores de que os rapazes mais gostavam. Obviamente, os jovens queriam ler as obras literárias mais ‘picantes’, contemporâneas como La casada infiel ou clássicas como La Celestina de Fernando de Rojas. Mas, ao ler estas coisas que os atraíam naquele momento, ganhavam mais gosto em geral pela literatura, pela poesia e passavam a outros autores. Para mim, esta foi uma grande experiência. Cumpri o programa, mas de modo desestruturado, isto é, não ordenado segundo aquilo que estava previsto, mas segundo uma ordem que resultava natural na leitura dos autores. E esta modalidade tinha muito que ver comigo: não gostava de fazer uma programação rígida, mas eventualmente saber mais ou menos onde chegar. Então comecei também a fazê-los escrever. No final decidi dar a ler a Borges dois contos escritos pelos meus rapazes. Conhecia a sua secretária, que tinha sido a minha professora de piano. Borges gostou muitíssimo e então ele propôs escrever a introdução de uma colectânea”.
“Parece-me excelente a ideia de reunir e imprimir os 14 relatos que conhecerá a seguir o leitor. A sua publicação será um estímulo para os jovens que os escreveram e um prazer, não isento de surpresas e de emoção, para quem os leia. ”, escreveu Jorge Luis Borges nesse prólogo, datado de 7 de Outubro de 1965. Como se pode ler no fac-símile do texto, revelado pela jornalista Cristina Pérez, num trabalho de reconstrução do encontro de “duas das figuras mais transcendentes da história argentina”, o labor do professor Bergoglio era enfaticamente enaltecido pelo escritor que observou que a colectânea “transcende o seu originário propósito pedagógico e chega, intimamente, à literatura”.
O gosto do Papa pela obra de Jorge Luis Borges, que a Quetzal tem estado a reeditar, permaneceu. E O Outro, o Mesmo, de 1964, é um dos livros eleitos – no prólogo, o autor diz que dos muitos “livros de versos” que escreveu este é também o que prefere (1). Não sabemos quais os poemas que Francisco mais vezes releu, mas não é improvável que, entre eles, esteja esse “Outro poema dos dons”, que assim começa:
“Graças quero dar ao divino
Labirinto das causas, dos efeitos
Pela diversidade das criaturas
Que formam este singular universo,
Pela razão, que não deixará de sonhar
Com um plano do labirinto,
Pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulisses,
Pelo amor que nos faz ver os outros
Tal como os vê a divindade,”
(1) Jorge Luis Borges – Obras Completas 1952.1972 (2.º volume). Teorema, 1998