Tenho escrito no 7Margens, não poucas vezes, sobre questões mais ou menos “fraturantes” da apelidada “moral sexual (católica)”: homossexualidade, eutanásia, aborto, adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo, feminismo e novos feminismos, questões de género, não esquecendo o artigo “Uma Universidade Católica para quê? Para quem?” (bem fraturante, como se viu…). Permito-me prosseguir neste rumo interrogativo porque o 7Margens me tem dado toda a liberdade de o fazer, respeitando sempre a autonomia e consequente responsabilização dos colaboradores convidados.

Imagem retirada do thriller do Filme “20.000 Espécies de Abelhas”
Fui há dias ver o filme que dá o título a este trabalho, “20.000 Espécies de Abelhas” da relativamente desconhecida cineasta Estibaliz Urresola Solaguren (País Basco), estreado em Fevereiro de 2023 no festival de Berlim, e altamente premiado. Foi a primeira longa-metragem de Solaguren. A trama do filme é inspirada num acontecimento verídico de um rapaz transgénero, Ekai Lersundi de 16 anos, que se suicidou em 2018. O filme debruça-se sobre a história, limitada ao espaço de um verão, de uma família em que um menino de apenas 8 anos – Aitor – vai sentindo ser transgénero e que continua a ser tratado pela família como rapazinho, causando um enorme sofrimento à criança e …perplexidade aos mais velhos. A criança revela-se deprimida, ansiosa, com enurese noturna. Um interessante artigo de Francisco Ferreira (Expresso-R 21.7.2023, pp. 52-53) alerta, logo no início, para a “confusão” e paternalismo preconceituoso com que os adultos lidam com a questão da criança trans -, sendo que esta criança não está nada confusa com a sua identidade de género e “se vai bater com coragem” porque sabe o que não quer: ser rapaz ou homem adulto “como o pai”, como afirma no filme. Aitor não se reconhece no seu nome e género e “quer saber porquê”. Bem no início do filme pergunta à mãe: “Mama, porque soy así?”. Neste caso a pergunta acontece precocemente, quando na generalidade tal dilema surge no início da adolescência.
A interpretação de Aitor (Sofía Otero), que se chama a si própria Lucía, é pungente, quase dramática, pelo que obteve um prémio de interpretação no mencionado festival. Gostaria TANTO, que aqueles que se afirmam católicos, apostólicos, romanos – que seguem à risca orientações vindas não se sabe bem de onde, continuando a lançar anátemas sobre a apelidada “ideologia de género” -, vissem com paixão (ou melhor, contemplassem) este filme. Tal como quem reza.
Não concordo com a utilização da palavra “ideologia” para classificar algo de tão complexo e fluído como a “identidade de género”. Quem trabalha com crianças pequenas – desde que seja sensível e informado/a quanto à dimensão deste tipo de questões – vai intervir pedagogicamente com a correspondente sensibilidade e respeito pelo “sentir” da própria criança, do seu grupo-turma e mesmo dos pais ou outros familiares. O uso da palavra “ideologia” é demasiadamente redutor, fechado e inamovível. As coisas não são “isto” ou “aquilo”. Em geral sinto-me confortável com diferenças e é fundamental, para nossa própria felicidade e dos outros, que sejamos abertos, tolerantes, despreconceituosos/as. Kant, o grande filósofo, afirmou que a virtude mais importante é o “respeito”.
Há cerca de dois anos (Novembro de 2021) comentei neste jornal um livro de Joana Estrela, destinado a crianças e publicado na reconhecida editora “Planeta Tangerina” (2020). Este livro abordava as questões de género (a contracapa afirma que o livro é ”para todas as idades”): quem “sentimos que somos?”. Um livro cheio de humor, simplicidade e respeito por cada criança tal como ela é , rejeitando um mundo limitado ao “preto e branco”… Nesse artigo eu própria descrevia de onde emerge a perspetiva transgénero na transição para o pós-feminismo e contestava a afirmação comum de que se tratava de “uma conspiração contra a família” e de “destruição da ordem natural de funcionamento da sociedade”. A tradição considera que se devem reforçar os papéis sociais de acordo com “a designação sexual ao nascer”: mas não será a identidade de género algo de muito mais fluido? Claro que assumo aqui, como noutras problemáticas, que há exageros e trágicas situações que não respeitam a criança, a sua evolução e direitos. A internet está cheia dessas histórias…
Alguns subtítulos dados pelos jornais a este filme afirmam que se trata de “um filme sobre a infância –trans”; “cada ser humano é uma espécie diferente”, “menino nasceu, menina será”, “a iconografia religiosa já escolheu de que lado está”. Aitor manifesta um desconforto sofredor quando toda a gente continua a tratá-lo como rapaz. A mãe, Ane, uma artista sensível que, talvez por isso, está atenta e “escuta” os sinais daquela criança e vai aceitando as suas especificidades. Acompanha, ajuda a discernir e, finalmente, reconhece. Aitor sente-se e quer ser menina, insistindo nesse facto. A mãe vai aceitando que ele deixe crescer os cabelos, pinte de azul as unhas de uma mão, rejeite brincadeiras mais violentas, correndo o risco de “bullying” por parte dos colegas de escola. Aliás todas as mulheres do filme são figuras centrais e interessantes: a mãe, a avó que é intolerante e se envergonha quando as vizinhas confundem o seu neto com uma menina, por sinal “linda!”. Há, no entanto, uma tia-avó (Lourdes), uma figura tutelar para Aitor, que aceita que ele fale de si próprio no feminino e a reconhece como diferente de outras crianças: “O que é ser menino, tia?” No filme as figuras masculinas são mais secundárias, funcionando num plano mais distante: o pai, em processo de separação, não entende aquele filho e considera a mãe demasiadamente tolerante.
Há traços de religiosidade exacerbada na avó. Mas na igreja Aitor contempla uma estátua de Santa Luzia, a santa padroeira dos cegos e da própria aldeia que, simbolicamente, a/o ajuda a “ver”, numa atitude mística de entendimento. Aitor diz à mãe querer passar a chamar-se “Lucía”. O fabrico de mel típico daquela região fascina a criança, assim como as correspondentes tradições ou mesmo superstições. O avô fazia esculturas em cera e a própria mãe as faz. Quando se apercebe de que há 20.000 espécies de abelhas, Lucía de alguma forma se identifica com este facto que lhe indica que há também inúmeros modos de ser criança. A contemplação das abelhas torna-se um processo que a leva a fazer perguntas sobre quem é Deus e o que é a Fé. Uma definição do tio-avô vai satisfazê-la: “A Fé é acreditar muito numa coisa!”. Aitor gosta dessa definição: acreditar muito numa coisa, lutar firmemente por ela. A cineasta trata toda a narrativa com sensibilidade e empatia, acompanhando os sentimentos e perplexidades – “confusão…” – de cada membro da família ao longo das férias. A pujante e verde paisagem dos Pirinéus representa um magnífico cenário. As abelhas tornam-se uma personagem importante do filme e uma metáfora da diversidade: 20.000 espécies de abelhas! -, afirma o tio-avô. O filme não pretende ser “ideológico”, ou fomentar escândalo, apenas problematiza uma realidade e, por isso, nos faz refletir. As três gerações de mulheres surgem como mais tolerantes porque sensíveis à dor daquela criança. Mas é com a natureza que a criança “resolve” os seus dilemas, não com os humanos – isto é, com a sociedade tal como se apresenta hoje – e a metáfora da organização social das abelhas revela-se poderosa.

Há episódios tocantes: a ida a uma piscina numa cascata com uma prima em que as crianças trocam de calções e Aitor mergulha nas águas frescas com um calção com folhos, bem “à menina””; Aitor dormia com o irmão e sentia-se envergonhado, mesmo incomodado e, uma noite, faz xixi na cama: o irmão Eneko, paciente, tolerante e protetor, apenas lhe pede que mude a roupa da cama sem qualquer reprimenda ou humilhando-o. Segundo a cineasta este irmão representa o futuro, a possibilidade de transpor as fronteiras do preconceito.
O clímax do filme coincide com uma festa de batizado na aldeia. Lucía fica tentada com um vestido bordado e esvoaçante, bem “à menina”, e quer levá-lo à festa; perante os rogos da criança a mãe acaba por consentir. Toda a gente fica surpresa e Aitor, no final da festa, acaba por ir discretamente mudar de roupa porque “não queria que a mãe ficasse triste”. Nessa altura sai de casa e foge para a floresta, abandonando os adultos. Toda a família parte aflita à sua procura chamando “Aitor!”, “Aitor!”. A mãe, separando-se do grupo começa a chamar “Lucía”, “Lucía” e acaba por receber a resposta do filho que se encontrava perto das abelhas a fazer um jogo que lhe haviam ensinado. Afirma enfaticamente para as abelhas: “Abejas, soy Lucía!”. À mãe fala de forma interrogativa: “Mama estás a despiertar?”. Lembro as frases do Petit Prince: “L’essentiel est invisible pour les yeux”; “on ne voit bien qu’avec le coeur”[1]. A mãe de Lucía via com o coração…
O filme termina com uma lindíssima canção de Lourdes Hiriondo “Oh Noite!” (“Gaua” na língua basca) – “a letra é tremenda, fala-nos de deixar para trás a noite obscura da Humanidade e da evocação de um novo dia” (F. Ferreira) – num final que fica em aberto: apenas vemos os pais e as crianças dormindo de mãos entrelaçadas, encaixados como num puzzle, na ampla cama do casal. Não sabemos o que o futuro trará a Lucía. Mas o filme faz-nos intuir que será uma criança protegida e integrada porque tem à sua volta uma família que a aceita tal como é. A família – incluindo o pai, Gorka, que ainda levará algum tempo a adaptar-se – atravessou a “fronteira mental e simbólica” (Ferreira) e respeita amorosamente Lucía. E Lucía, pelo seu lado, fez ouvir a sua “voz”.
Se à ida para a aldeia as crianças brigavam no carro entre si num ambiente agressivo e caótico, no regresso vemos Lucía pacificamente encostada ao vidro aberto do automóvel, serena, silenciosa, contemplativa, deixando os longos cabelos esvoaçar ao vento. Lucía é “uma criança com futuro” (Solaguren). Antes a sociedade a deixe ser como é.
Este é um filme sobre revelação, epifania, sobre com-paixão e misericórdia, aceitação e respeito. Um filme que intui um novo paradigma. Relembro S. Paulo aos Gálatas (3, 27-28): “todos quantos em Cristo fostes batizados, de Cristo vos revestistes. Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”.
[1] “O essencial é invisível para os olhos”; “só se vê bem com o coração”.
Filme: 20.000 espécies de abelhas
Realização: Estibaliz Urresola Solaguren
Elenco: Ane Gabarain , Sofía Otero , Patricia López Arnaiz
Drama, 125 min
Teresa Vasconcelos é professora do Ensino Superior (aposentada) e participa no Movimento do Graal. Contacto: t.m.vasconcelos49@gmail.com