A “guerra ao terror” anunciada pelo Presidente Bush (filho) na semana após o 11 de setembro de 2001 continha uma redefinição da política externa dos EUA e antecipava o rearranjo das relações internacionais. Mas foi muito mais do que isso. Influenciou a política interna das democracias nas quais, entre outras, legitimou a prática sistemática da violação dos direitos humanos dos considerados terroristas – processo de que Guantánamo é apenas o exemplo mais concreto. Acabou instituindo três classes de humanos: os terroristas, os seus amigos e nós. E quem não é inteiramente humano não é portador da integralidade dos direitos humanos. Mas as democracias que não respeitam os direitos humanos de todos também não são verdadeiras democracias. E perdem a moral.
A “guerra ao terror” permitiu a colaboração mais efetiva entre as polícias do mundo ocidental e, assim, previnem-se múltiplos ataques terroristas, garantem as próprias. Contudo, os atos terroristas que atingiram alguns centros urbanos europeus durante os 15 anos que se seguiram ao 11 de setembro alteraram profundamente a vida em sociedade nestes países. O medo e a insegurança anteriormente gerados pelo pequeno crime naqueles que se supunham potenciais vítimas dele passaram a constantes vividas pela generalidade das populações ameaçadas por atos terroristas contra todos. O “inimigo externo” – como em todas as guerras, mas agora por maioria de razão – passou a poder ser o “passageiro de metro sentado ao nosso lado” e, em alguns casos, a desconfiança do Estado leva mesmo ao controlo dos cidadãos à margem da lei.
A verdadeira violência da guerra abateu-se, porém, sobre as populações dos países alvo da “guerra ao terror”. Centenas de milhares de vítimas, atrocidades de todo o género, corrupção e negócios a conduzirem decisões pseudomilitares, um pântano de incoerências e de criação fictícia de protagonistas inqualificáveis, quase sempre incapazes de atacarem as raízes do terrorismo e pactuando com alguns dos seus mais importantes financiadores. Vinte anos depois do 11 de setembro, as sombras da “guerra ao terror” são maiores do que aquilo que eventualmente se conseguiu e quase tão negras como a erosão provocada no respeito e na moral das democracias.
O 7MARGENS socorre-se de um texto que a sua colaboradora Helena Araújo, residente em Berlim (e que na altura vivia em São Francisco, EUA) publicou a 11 de setembro deste ano no seu blog Dois Dedos de Conversa para oferecer aos seus leitores uma perspetiva do ataque às torres gémeas visto a duas décadas de distância.
Um outro olhar sobre o 11 de Setembro

“Atrás de cada esquina espreitam várias direcções.” Stanisław Jerzy Lec
À distância de vinte anos, destaca-se com nitidez o momento mais especial do meu 11.9.2001. Aconteceu a meio da tarde, quando fui buscar os miúdos à escola, em San Francisco, e li no “diário da escola” a frase que a directora deixara aos pais:
For the sake of the future and the peace, please tell your children how is the life of the Palestinian people. We must walk in their moccasins to understand.
Eu tinha passado o dia em frente à televisão, tomada por um sentimento de incredulidade. Sentia-me atordoada pelas imagens do dia, e em particular pela sequência que tinham passado repetidamente na tv: primeiro o casal que saltou de mãos dadas da torre em chamas, depois um grupo de palestinianos a aplaudir. Em contrapartida, os meus filhos passaram esse dia com uma mulher que fazia questão de recusar a lógica simplista do ódio.
O segundo momento mais valioso desses dias de estupefacção e medo foi quando soube que na Bay Area havia grupos de cristãos que se ofereciam para servir de escudo humano em mesquitas e outros locais de encontro de muçulmanos, para os protegerem de pessoas enfurecidas e violentas que estavam dominadas por uma necessidade urgente de vingança.
“Atrás de cada esquina espreitam várias direcções”: no próprio dia em que os EUA foram vítimas de um ataque terrível, bárbaro e espectacularmente humilhante, houve pessoas que escolheram o caminho de construção da paz – e são essas pessoas que lembro vinte anos depois com enorme gratidão.
O governo norte-americano escolheu a direcção oposta. O gigante ferido no seu amor-próprio, desnorteado, cego de dor e – sobretudo – de humilhação, tentava encontrar um inimigo plausível para poder mostrar ao mundo que ainda tinha músculos. Ao fim de algumas semanas, decidiram-se pelo Afeganistão – embora o ataque tenha sido preparado em Hamburgo e na Florida, e não houvesse um único afegão naquele grupo de terroristas. A guerra começou como uma retaliação e um esforço para acabar com os campos de treino de terroristas, mas em breve mudariam a narrativa: afinal, tratava-se de levar a democracia e os direitos humanos ao Afeganistão. O mundo comoveu-se com as fotografias das mulheres de Kabul finalmente livres da burca, do soldado americano que abraçava um bebé afegão, das crianças que lançavam papagaios de papel no céu da capital: a máquina da propaganda a funcionar com toda a eficiência. E pouco importava que, para “levar os direitos humanos ao Afeganistão”, só nos primeiros dois anos da guerra as acções militares tivessem causado mais vítimas civis que os ataques do 11 de Setembro. Muitas mais se seguiriam: estima-se que quase 50.000 civis tenham morrido como vítimas de bombardeamentos e armas de fogo, e várias centenas de milhares como vítimas indirectas desta guerra.
Com o Afeganistão mais ou menos dominado, a empresa da guerra norte-americana virou-se para o Iraque. Ficaram famosas as visitas do Dick Cheney à sede da CIA para pressionar os agentes a trabalhar com mais afinco de modo a fornecer as provas necessárias para justificar a invasão desse país. Também deu muito que falar o caso da espia Valerie Plame, traída por um dos homens do presidente Bush, o que foi interpretado como um acto de vingança contra o seu marido, que ousara negar que o Iraque tivesse comprado urânio no Níger, deitando por terra um dos argumentos mais importantes entre os inventados para justificar a invasão.
Por essa altura, o aproveitamento indecente das vítimas do 11 de Setembro já há muito se tornara uma banalidade. As caixas de correio electrónico pipocavam de mails a lembrar o casal que saltara de mãos dadas para o abismo no WTC: em memória deles era imperioso bombardear Bagdad.
Pouco depois da invasão do Iraque, os escândalos começaram a suceder-se: as imagens indecorosas da prisão e da execução de Saddam Hussein, a tortura e o sadismo desenfreados em Abu Ghraib, as revelações wikileaks (lembram-se daquele filme no qual soldados norte-americanos disparam sobre civis?), o comandante alemão que cometeu um erro de análise e encomendou um bombardeamento aos norte-americanos, que teve como consequência a morte de 90 civis afegãos, o presidente Karzai a implorar repetidamente aos ocupantes ocidentais que parassem de matar civis, que parassem de matar crianças…
Gráficos comparando o número de vítimas do 11 de Setembro, com as pessoas vitimadas no Iraque e Afeganistão. Fonte: Prose Before Hos.
Em 2010, o resultado da direcção que o governo norte-americano escolheu tomar após o 11 de Setembro era este: até à data, o número de soldados norte-americanos mortos já ultrapassava o de vítimas dos ataques em 2001; por cada civil morto no 11 de Setembro, mais de 300 civis afegãos e iraquianos tinham perdido a vida. A despudorada assimetria da violência já se sentia assim em 2010, e o pior estava ainda para vir: a ocupação do Afeganistão continuaria ainda por uma década, o daesh começaria em breve a semear o terror a partir de um Iraque desestabilizado pela invasão, a tragédia síria iria provocar milhões de refugiados. Uma pequena parte destes conseguiria fazer o difícil caminho até à Europa, o que acabaria por ter repercussões no panorama político europeu, com o aproveitamento oportunista que permitiu o regresso da extrema-direita aos parlamentos.
“Atrás de cada esquina espreitam várias direcções”, e após 11 de Setembro de 2001 os EUA escolheram a pior imaginável.
Vinte anos depois do 11 de Setembro: continuo a sentir o terror e o choque pela morte daquelas 2.977 pessoas, e comovo-me sempre com os relatos das tragédias pessoais. Ainda ontem, num documentário alemão, chorei com a mulher com sotaque do sul da Alemanha que contava que o marido morreu num dos aviões de NY, na véspera da entrada da filha de 2 anos no infantário, onde lhe estavam a preparar uma festinha de boas-vindas. Foi falar com as educadoras, disse-lhes: “se eu me estou a controlar para a miúda ter o seu dia especial, vocês têm de ser capazes de fazer o mesmo”. E a pequenita lá foi, no dia 12 de Setembro, saborear a festa a que tinha direito, sem saber que as imagens do momento em que o pai morreu a perseguiriam pelo resto da vida.
Mas a memória destas vítimas foi de tal maneira ultrajada pelo governo belicista norte-americano, e em nome delas foram cometidos tantos e tão hediondos crimes, que se torna difícil para mim invocá-las neste dia: sinto-me a participar numa gigantesca manobra de propaganda. Acredito que nenhuma dessas pessoas quereria que a sua trágica morte servisse de pretexto para iniciar guerras que iriam infligir a milhões de famílias sofrimentos idênticos àqueles pelos quais a sua própria família passou.
Também me incomodam as frases que se repetem muito nesta data, do tipo “o 11 de Setembro veio mudar tudo”. Pelo contrário: o 11 de Setembro não veio mudar nada, apenas reforçou os vícios antigos. O mundo continuou a seguir a sua rota de violência e impiedade. A seguir a essa esquina, nenhum dos poderosos se lembrou de escolher uma direcção que conduzisse à paz.
Helena Araújo vive em Berlim e é autora do blog Dois Dedos de Conversa, onde este texto foi inicialmente publicado.