[O 7MARGENS desafiou alguns leitores a contarem o que encontraram quando se decidiram a dar as mãos para pôr de pé respostas a necessidades concretas de outras pessoas.]

O projeto Virar a Página nasceu no Colégio Luso-Internacional de Braga para dar resposta aos casos de emergência alimentar que se multiplicavam, um pouco por toda a cidade. Foto: Direitos reservados.
No meio de tudo isto, o meu trabalho é pequeno, muito pequeno, um quase-nada. Mas gosto de pensar que é um quase-nada no sentido certo.
Escrevi, há mais de ano e meio, um texto de opinião no 7MARGENS sobre a minha experiência dos tempos de quarentena, entre outras coisas, num projecto que dava os primeiros passos: uma cantina solidária que nascia no Colégio Luso-Internacional de Braga para dar resposta aos casos de emergência alimentar que se multiplicavam, um pouco por toda a cidade, ao mesmo tempo que várias respostas sociais se viam forçadas a fechar as portas por causa da pandemia.
A experiência foi, desde o início, avassaladora. Por um lado, a dimensão das tragédias vividas por cada uma das famílias que nos ia aparecendo, uma realidade dura e tão próxima de mim que descobria, a pouco e pouco, com um sentimento próximo do desespero – como podia ter vivido tantos anos sem me dar conta de tudo isto? Como era possível vivermos tão perto e tão alheados do sofrimento do nosso próximo? Por outro lado, a generosidade que ia testemunhando de tantas pessoas que se mobilizavam, ora para serem voluntários, ora para doarem do pouco ou muito que têm para que não tivéssemos de abrandar. A capacidade que se foi instalando à nossa volta e nos permitiu dizer sempre que sim aos desafios que apareciam.
Se, no início, pensávamos que seria um projecto para durar o tempo do confinamento, quiçá mais umas semanas, enquanto as respostas que tinham encerrado se recompunham, rapidamente nos apercebemos de que não era bem assim. Não havia, na cidade, nenhum outro projecto com capacidade de resposta imediata a pedidos de ajuda, nem os casos que apareciam mostravam sinais de abrandar.
Ficar enquanto for preciso

Fomos ficando. Decidimos que ficávamos enquanto formos precisos. Continuaríamos um projecto completamente voluntário, dependente do compromisso de cada um e de donativos privados, de particulares e de empresas. Chamámos-lhe Virar a Página (VaP).
Resolvemos não criar uma associação nova, mas juntar este projecto a uma que já existia, a YAY, que se preocupa com a integração de jovens adultos com deficiência na sociedade, e com quem vamos estabelecendo pontes muito importantes, especialmente na integração desses jovens nas nossas equipas de voluntariado.
Seria o que sempre foi, um projecto de emergência alimentar, com flexibilidade para acolher famílias novas de um dia para o outro (ou, às vezes, em ainda menos tempo), mas onde era esperado que o apoio fosse temporário: vemos a alimentação como um direito e a nossa acção como o concretizar desse direito, onde o Estado falha. Por isso, é essencial o trabalho que fazemos para conhecer a situação de cada família e ajudar a encontrar respostas mais permanentes, muitas vezes articulando com outras instituições de apoio social, seja a acolher casos que, por um motivo ou outro, não podem ser integrados nos apoios financiados, seja a encaminhar famílias que apoiámos num primeiro momento para os outros apoios existentes. Das pessoas que deixam de precisar da nossa ajuda, dizemos que viraram a página.
Combate ao desperdício

Colocámos ainda no centro o combate ao desperdício, aceitando donativos de excedentes de comida preparada, reutilizando, para acondicionar as refeições, todo o tipo de recipientes alimentares, devidamente esterilizados, e ainda aproveitando a rede que estabelecemos, tanto de beneficiários como de instituições, para distribuir roupa, brinquedos, electrodomésticos, livros, entre outros.
Finalmente, um pilar muito importante do Virar a Página é a forma como tratamos os beneficiários, de igual para igual, sem discriminações e sem juízos de valor. Acreditamos que há uma dádiva recíproca neste tempo que dedicamos uns aos outros. Por isso nos alegra tanto que sempre tenhamos tido beneficiários que são também voluntários e se envolvem directamente nesta família VaP.
Actualmente, serão entre os 100 e os 150 voluntários activos em todas as tarefas, desde as recolhas de excedentes alimentares em restaurantes, empresas e mercados até à confecção de alimentos, passando pelo embalamento, a distribuição, a comunicação, o encaminhamento, a angariação de donativos e voluntários, a formação e criação das escalas dos voluntários, entre muitas outras tarefas, mais ou menos visíveis, que vão mantendo toda a estrutura a funcionar.
Apoiamos, presentemente, cerca de 70 agregados familiares, com mais de 140 pessoas, a quem entregamos diariamente almoço e jantar, mas, em fases mais difíceis, já chegámos a ter quase o dobro. Ao todo, já passaram por nós mais de 900 pessoas e mais de 500 famílias e já servimos cerca de 240 mil refeições.
Um quase-nada

No meio de tudo isto, o meu trabalho é pequeno, muito pequeno, um quase-nada. Tenho a certeza de que recebo muito mais do que aquilo que dou ao VaP. Mas gosto de pensar que é um quase-nada no sentido certo. Durante quase um ano, fui todos os dias ajudar na preparação dos sacos para cada família. Depois, outras obrigações foram-me impedindo de o fazer com essa frequência, mas continuo a ir sempre que posso.
À parte disso, todos os dias, desde Abril de 2020, faço a articulação com a equipa de acção social, envio, todas as manhãs, as quantidades a cozinhar e as alterações a fazer na preparação dos sacos para as famílias, mantenho as bases de dados e vou dando uma ajuda em várias outras tarefas.
É natural, penso, uma certa aceitação da realidade, um acostumar que me ajude a não desesperar tanto como no início, mas cada vez que sei da situação de mais uma família, mais um desenrolar de circunstâncias impossíveis de antecipar, mais um conjunto de acasos que levou à desgraça, sinto a mesma frustração, a mesma sensação de que falhamos a estas pessoas, enquanto sociedade. A mesma distância, até, entre as minhas possibilidades e circunstâncias e as daqueles que vivem a tão poucos metros de mim. Aquilo que mudou talvez, a surpresa que já não tenho e a certeza de que tudo o que façamos é pouco. Resta a esperança de que possa fazer, ainda assim, a diferença.
Ao longo deste tempo, o que mais me tem movido é mesmo isso, um sentimento enorme de esperança, alimentada pelas mais diferentes coisas: aquela família que deixou de precisar de nós porque arranjou emprego, as palavras daquele voluntário, a história de superação daquela pessoa que ainda encontra força para um sorriso depois de todas as rasteiras que a vida lhe pregou, que ainda encontra força para agradecer, os encontros de pessoas tão diferentes e tão próximas, tão unidas numa mesma causa, numa celebração, diria, da condição humana.
No VaP dizemos, em tom de brincadeira, mas muito a sério, que todas estas pessoas que, de uma forma ou de outra, gravitam à volta do projecto são também VAP – Very Amazing People. É esta diversidade de pessoas incríveis, de palavras, de sorrisos, de histórias, de caminhos que se cruzam, todos neste lugar, que me move e me dá ânimo para continuar, a cada dia.
Não consigo pensar em melhores palavras para resumir aquilo que tenho vivido com o Virar a Página do que as de Vinícius de Moraes: “A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida.” E por aqui continuaremos, disponíveis para o encontro.
Luís Nuno Barbosa é presidente da Civitas Braga e membro da coordenação do Virar a Página
No endereço seguinte podem ver-se alguns vídeos do VaP: https://www.youtube.com/channel/UCZctB5egmxbXFzQNG06w0bg