
“Ascensão de Cristo (Atos I, 1–9): Estudo para vitral” (ca. 1875–84), de Sir Edward Burne-Jones Original do MET Museum. Domínio Público.
Postos a caminho pelo Papa Francisco, que colocou o “povo de Deus” no eixo do processo de discernimento sobre a Igreja no Terceiro Milénio, deparámo-nos espantosamente com a raiz do próprio cristianismo: essas comunidades de vida e de fé, tão próximas que eram “um só coração e uma só alma”, e tão cheias de amor a Deus que não podiam senão irradiá-Lo.
Não sabíamos ao que íamos e, no entanto, fomos. “Fazei como Ele vos disser” (João 2, 5). Fizemos o que o Papa pediu e da forma como pediu: usámos o método do discernimento espiritual, tão simples como o respirar. Lembrámos a nossa história pessoal com Deus, as luzes e as sombras, os sonhos cumpridos e por cumprir, as dores e os desejos. Juntos, e Deus connosco (é evidente), sonhando a Igreja a partir da memória de um caminho já percorrido.
Assim, a memória individual vê-se transformada em memória coletiva. Mas, muito mais do que isso, cai misteriosamente sobre nós todo o peso da memória do povo de Deus: somos já não só nós nesse micro-poliedro, mas toda a Igreja desde o princípio, e escutámos em nós as vozes desses primeiros, cercados por tantas dificuldades, mas nunca paralisados, antes sempre a caminho de um outro (onde Deus habita) com o fogo do Amor dentro de si.
Sacudindo as poeiras da letargia e de tantos mundanismos a que cedemos tão facilmente, cada encontro teve o dom de nos confrontar com essa Igreja de Cristo que Ele ama e acompanha, revelando-nos o modo. O modo é Ele mesmo, o Único Modelo, tão próximo, tão simples, tão despojado e tão comprometido que não podemos inventar nem fingir não ver.
Ele, o Mesmo, a pedir-nos que nos abeiremos e descubramos sem medo todos os descartados de hoje, os leprosos, os estrangeiros, os paralíticos e os cegos, os surdos, as prostitutas, os ladrões, os Zaqueus, as Madalenas todas dadas como perdidas e que Ele recebeu e amou.
Ele, o Mesmo, a pedir-nos para repousarmos não na Arca de Deus mas no Deus da Arca, recusando o bafio das seguranças falsas e idolátricas e buscando incessantemente o Seu Rosto, princípio e fim de todos os rostos que Ele veio resgatar.
Ele, o Mesmo, dizendo “vão”, “saiam”, abram as portas e deixem-nas abertas, ou apenas “mantenham-se disponíveis”, “dêem o que levam” ainda que sejam cinco pães e dois peixes (Jo, 6,1), mas dêem, não deixem que não se cumpram os milagres possíveis pela vossa incúria, egoísmo ou falsa humildade.
Caindo em nós, todos nos vimos desconfortáveis no nosso lugar. A um cristão não é dado ter um lugar, segurança alguma. O único lugar é Cristo e cada dia é o Seu dia em nós, se nos pusermos à escuta e estivermos ligeiros de carga e coração.
Em surdina ou em avalanche, todos percebemos bem fundo: a Igreja não é o senhor padre, “a Igreja és tu, somos nós juntos”, onde Ele se faz indubitavelmente presente, como fez com os discípulos de Emaús (Lucas 21, 13), como faz com todos os que o procuram, juntos, de coração sincero.
Ainda que nada aconteça, já muito aconteceu. O eco das vozes do povo de Deus permanece como farol nos que se dispuseram a segui-lo, tão diversas e ao mesmo tempo harmoniosas que não podemos esquecê-las. Fica connosco, Senhor, não deixes que anoiteça.
Dina Matos Ferreira é coordenadora local da dinâmica sinodal na paróquia católica de São Francisco Xavier, em Lisboa.