Ruben David Azevedo, colaborador da coluna Entre Margens, acaba de editar O Que Nos Salva?, coletânea de textos sobre “o Absoluto, a Consciência, o Absoluto-da-Consciência, o Sentido da vida, e o Mistério de Tudo”, que inclui também uma dezena de crónicas publicadas no 7MARGENS.
Professor, nascido no Porto em 1985 e residindo atualmente em Lisboa, Ruben Azevedo licenciou-se em Filosofia e profissionalizou-se no ensino da disciplina. Define-se como leitor ávido, “caminhante (literal e figurativamente, no corpo e no espírito) em busca da sua visão e do seu Sentido” e “alguém que gosta de se pôr à porta do Mistério, de habitar o limiar do Absoluto, porque pressente que a vida é maior que a vida e que é talvez na raiz da Consciência que se encontra a chave do Enigma.
O Que Nos Salva?, com 190 páginas, é o seu segundo livro (o primeiro, tal como este publicado na Chiado Books, foi Enigma – Noemas em Torno do Mistério do Ser e do Existir). O livro está disponível para compra em papel na Chiado Books, Amazon e Fnac.
A crónica que a seguir se reproduz é um dos textos também publicados no livro.

Rosário Boavida, Jacob e o Anjo, reprodução a lápis da obra de Alexander Leloir.
O ser humano tem dentro de si mesmo a semente do seu futuro como espécie. Basta considerar a beleza que tem a capacidade de criar. O que de mais sublime consegue realizar, por exemplo numa grande sinfonia, num pedaço de literatura, na espiritualidade, enfim, em toda a arte, e também na ética e no amor, é não apenas a medida desmedida do seu desejo de ser, mas também a medida desmedida da sua capacidade de ser, e portanto daquilo que, ultimamente, será. Fundamentalmente, porque já o é.
Todas as palavras que salvarão a humanidade já foram ditas, dizia Almada. Algo de semelhante podemos dizer quanto à grande arte, que não obstante todas as suas variações correntes, parece ter já estabelecido na história as suas linhas gerais, universais, e a bem dizer, intemporais. O mesmo na filosofia. O mesmo na espiritualidade. O futuro, qualquer que ele seja, dele já tivemos múltiplos vislumbres, intuições, sentimentos, desses que parecem dizer-nos estarem guardados para sublimes horas, logo que alcancemos um território inteiramente novo do ser e da verdade. Porque o que não nos falta, agora e já, é espaço na alma para que o sentimento lavre desimpedido; é profundidade abismal para que o belo e o verdadeiro calem fundo, até que do nervo da alma vibrem notas de inexorabilidade de um bem ao qual não se poderá fugir. Porque está no centro absoluto das coisas – que nós intimamente compreendemos, nesses momentos de sublime sentimento e comoção, ser também o nosso absoluto e irrevogável centro.
Quem somos nós? O que somos nós? O que significa “querermos ser felizes”? Somos Ser e estamos no Ser – somos a pergunta mais radical, deslumbrada e abismada com a sua própria evidência, intrigada até às raízes com a sua própria possibilidade. Somos, isso sabemo-lo de saber direto e imediato, interioridade. Somos interioridade que se debate consigo mesma, na tentativa de se esclarecer, como se, em nós, a Realidade buscasse o absoluto da sua própria visão de si para si – como se não a tivesse já, no absoluto do seu próprio coração. Somos todo um conjunto de coisas que não sabemos o que REALMENTE SIGNIFICAM do ponto de vista da realidade última: dúvida, emoção, desejo, racionalidade, sensibilidade, individualidade, etc. Mas o infinito do que somos escapa-nos, senão talvez na medida em que, pela medida do que sentimos, pensamos, intuímos ou desejamos, esse infinito nos é dado. De algum forma, intuímos que somos infinitamente mais do que aquilo que somos, uma espécie de ponta ínfima de um iceberg ilimitado. E é talvez aí que reside essa evidência tão profunda e tão assombrosa ao mesmo tempo, essa de que SOMOS – é como se nos confrontássemos de súbito com o próprio infinito dentro de nós, incrustrado, como um diamante, na aparente mediocridade da nossa carne, na exiguidade terrena e mundana da nossa existência comum. Como se fossemos uma simples árvore à qual fosse subitamente revelado que as suas raízes terminavam, afinal, não a poucos metros de profundidade em solo anónimo, mas no fundamento da própria realidade, primeiro e mais nobre dos fundamentos de tudo o que existe.
Somos qualquer coisa que é – mas o que é, e o que significa, Ser? Nem o Ser sabemos o que é – o próprio Ser é o Grande Mistério. Porque é evidente, absolutamente evidente para nós, que somos, porque a nossa existência como consciências (i.e. como interioridades subjetivas) coloca-nos inevitável e incontornavelmente perante a realidade do Ser, isto é, da existência como tal, que necessariamente existe em vez do nada. E assim explode nas nossas consciências este vínculo subliminar e…. necessário, entre o ser que somos e o Ser enquanto tal. E é este infinito do Ser que, em boa mente, é impossível negar, e cuja dimensão dificilmente podemos considerar como limitada ou criada (pois como poderia o ser terminar em algo diferente de si próprio, ou ser causado pela sua absoluta negação?), que emerge como assombroso e infinitamente misterioso na revelação singular do nosso próprio ser a nós mesmos.
A resposta final acerca da questão “o que somos” não a poderemos jamais conhecer, a não ser que nos tornemos no próprio Ser cuja visão de si próprio não tem quaisquer limites. A resposta final não será discursiva nem racionalizável, porque a razão e o entendimento não alcançam, em princípio, aquilo que a consciência, na sua insondável profundidade, tantas vezes alcança sem palavras nem mediação lógica. Até agora somos, e seremos, dúvida, interrogação, tensão entre a perceção da finitude e a intuição da infinitude, entre o dado e o desconhecido. Seremos até mesmo tensão entre o que não entendemos nem podemos entender em razões e palavras, e aquilo que sabemos sem saber ainda que sabemos, por intuições e sentimentos que a si mesmos se bastam, mas cuja verdade que objetivamente exprimem no coração da subjetividade somos ainda muito incapazes de compreender completamente. Não porque nos impeçam para sempre os limites da razão, como querem os antimetafísicos desde Kant, mas porque ainda não descobrimos – ou se descobrimos, ainda não quisemos dar-lhe a devida centralidade filosófica – como expandir/aprofundar os limites atuais da nossa consciência comum. Neste domínio, a filosofia enquanto discurso ou expressão racional ou lógica, já deu o que tinha a dar. Atingiu o seu limite. Agora é tempo de dar espaço e voz à mística, se coragem houver para tal, e à espiritualidade efetivamente vivida, que de muitas formas se tem exprimido ao longo de milénios de história escrita, do Oriente ao Ocidente.
