Quando, durante vários anos, antes de 25 de Abril de 1974, o Natal se aproximava, a RTP incluía na sua programação uma espécie de tempo de antena que muitas famílias portuguesas aguardavam com desmedida ansiedade. A partir de várias zonas das então designadas “províncias ultramarinas”, a televisão portuguesa dava um módico de voz aos soldados que para lá tinham ido combater. Cada um tinha direito a surgir no pequeno ecrã durante escassos segundos. O que em tão reduzido tempo teria de caber implicava uma rapidez de dicção que amiúde tornava dificilmente perceptível o que se pretendia transmitir.
Era comum os soldados começarem por afirmar: “Atenção”, após o que indicavam a localidade em que a atenção era requerida. Nomeavam, depois, os laços familiares daqueles a quem se dirigiam: a mãe, o pai (ou, genericamente, os pais), os irmãos, a mulher e os filhos. Muitas vezes era incluída a noiva (“futura noiva”, prometiam alguns; a “namorada” ou a “miúda”, referia um ou outro) e, raramente, alguns parentes menos próximos, como os tios ou os sobrinhos, por exemplo. Às vezes, acrescentava-se o adjectivo “querido”, no feminino ou no masculino, para qualificar a mãe ou o pai. A seguir, diziam sempre o nome e, por vezes, o número de soldado. A ordem por que isto era dito era mutável. Invariável era a mensagem vir no final. Meia-dúzia de palavras simples para declarar: “Um abraço que eu estou bem”, havendo quem julgasse útil acrescentar: “Como vêem”. Os votos de bom Natal, de bom ano novo ou de festas felizes também se podiam escutar de vez em quando, assim como os: “Adeus e até ao meu regresso”.
O rosto é que era a verdadeira mensagem. Vê-lo era tudo o que para as famílias importava, mesmo que nele se pressentisse um mau estado de alma. Ver vivo o filho, o irmão, o marido ou o pai era o que, então, importava. Mas o que ainda mais interessava era que o regresso fosse com vida. Que se sobrevivesse à guerra que se travava em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e Timor.
Para que isso assim pudesse acontecer, muitos portugueses escreviam a pedir a intercessão da Senhora de Fátima. “Correio de Nossa Senhora” é como se chama o arquivo que, no Santuário de Fátima, detém uma correspondência estimada em quase oito milhões de todo o género de missivas. A Caixa de Correio de Nossa Senhora (Temas e Debates, 2020) é também o título do livro de António Marujo, jornalista que, pela primeira vez, divulgou a existência deste precioso espólio e ofereceu preciosos exemplos do que nele se pode encontrar a benefício do conhecimento histórico, teológico, antropológico, sociológico, etc.
António Marujo dá conta dos pedidos mais ou menos pungentes endereçados à Senhora de Fátima: “Ali se encontra referido muito do que foi e é importante na vida de milhões de portugueses e estrangeiros: os pedidos de que filhos, netos, noivos ou namorados regressem da guerra sãos e salvos; que o pai deixe de bater na mãe; que os pais se dêem bem; que o marido deixe a vida dissoluta; que a mulher deixe de ser ofensiva e aceite a família do cônjuge; que se consiga o emprego necessário; que se encontre um noivado ou um namorado desejado; que se resolvam problemas de saúde ou se obtenha a passagem nos exames para os quais (pouco ou nada) se estudou”.
“Quando falam da Guerra Colonial, a esmagadora maioria das cartas são escritas por mães e irmãs. Depois, há esposas, avós ou outras familiares aflitas (os pais ou familiares homens escrevem muito pouco); namoradas ou noivas esperançadas”, revela António Marujo, esclarecendo que as missivas tanto poderiam dizer respeito a jovens que não sabiam se iriam cumprir o serviço militar como aos que já o estavam a cumprir. “V., uma mãe escrevendo do Norte, pede ‘três graças’, sendo uma delas a de o seu ‘filho não ficar apurado na tropa’. E pede: ‘Fazei se o meu irmão e o Manuel merecerem não irem para o Ultramar’”.
A urgência dos pedidos sobrepunha-se à dificuldade em os redigir. “Eu lhe penso uma grança e um milhagre para o meu filho M. quando ele for a inspeção para ficare num nubero baicho com os outros irmaes”, pode ler-se num dos escritos que António Marujo cita. Noutro, formulado em 1967 por uma aluna de um colégio da região de Lisboa, é transmitido a Nossa Senhora um pedido, com desejos hierarquizados de atendimento, em relação a J. (“o meu J.”, declara a aluna). O melhor era ele não ir para o Ultramar. “Se por acaso por qualquer motivo tiver que ir”, é desejável “que ele nunca saia da cidade”. E, saindo, que “nunca lhe aconteça nada”.
O livro A Caixa de Correio de Nossa Senhora, de António Marujo, oferece um singular e até agora inédito retrato de um Portugal contemporâneo – e da sua memória traumática – para o qual é requisitado o nosso olhar crítico.
Eduardo Jorge Madureira integra a equipa de Redacção do 7MARGENS; este texto foi publicado na edição de 13 de Dezembro do Diário do Minho.