
Tolentino Mendonça: “Não podemos ver a pastoral sócio-caritativa como um departamento, mas como um sopro transversal, um domínio da pastoral que percorre todas as áreas”. Foto Mário Santos/ Quetzal Editores
Felicito a Igreja Católica de Lisboa pela realização do Congresso Diocesano de Pastoral Socio-Caritativa. Que dê abundantes frutos. O que, por enquanto, me chamou mais a atenção desta magna reunião eclesial, foram alguns extratos da comunicação feita pelo cardeal Tolentino Mendonça. “Não podemos ver a pastoral sócio-caritativa como um departamento, mas como um sopro transversal, um domínio da pastoral que percorre todas as áreas; caso contrário o cristianismo corre o risco de ficar desencarnado e teórico”[1], foi uma das afirmações que maior impacto teve em mim por continuarem a ser uma preocupação que tem acompanhado a minha batalha por uma valorização maior da pastoral social.
Não se trata de desconsiderar o anúncio da Palavra de Deus nem de a celebrar bem, mas de dar credibilidade à Palavra e coerência aos atos celebrativos. O cardeal diz isto de uma forma mais acutilante, considerando a pastoral caritativa “como um sopro transversal a toda a pastoral”.
A vivência do amor é intrínseca à condição de ser cristão, sem o qual o cristianismo não passa de uma teoria envolvida em sonantes (nem sempre) retóricas e sem interesse para as pessoas por não encontrarem nele as respostas que procuram para todo o tipo de dificuldades que vivem. Este tipo de procedimento já fez Karl Marx referir-se à religião como “ópio do povo”[2]. Este filósofo do século XIX quis pôr em causa o abuso nocivo, sobretudo para com os mais frágeis, que os crentes faziam da invocação de Deus, apoiados na sua desencarnada fé e atafulhados em muitas incoerências. Acrescento à preocupação do cardeal Tolentino o perigo de uma pastoral não envolvida pelo amor a Deus expresso, inequivocamente, no amor pelos irmãos (cfr. Jo. 4, 20-21; Tg. 2, 18) se tornar numa fé “anémica” e alienante.
O mais recente cardeal português não põe em causa a necessidade de existir um departamento específico da pastoral social; mas, segundo a minha interpretação, que não se trate de um departamento estanque. Esta atomização da pastoral faz com que ela não tenha uma correspondência razoável entre a miríade de iniciativas e a sua eficácia, traduzida em frutos de um mundo mais próximo dos valores do Reino de Deus que Jesus veio implementar e que tem a dimensão “assim na terra como no Céu”. Para além da fraca eficácia, o desperdício ou a deficiente gestão dos recursos tornam-na pouco eficiente.
O Papa emérito Bento XVI afirmou mesmo que a “caridade precisa de organização”[3] e o mesmo reiteraram os bispos portugueses, em 1997, na única instrução pastoral sobre a acção social e caritativa publicada até hoje[4]. Algumas das orientações deixadas nessa instrução ainda estão por cumprir, bem como e, infelizmente, as normas determinadas por Bento XVI, num motu proprio que intitulou por Intima Ecclesiae Natura, datado de 11 de novembro de 2012; sobre estas normas canónicas, nada foi feito até agora.
Acerca dos caminhos a trilhar pela pastoral social, em Portugal, remeto para o extraordinário texto de Acácio Catarino, publicado no 7MARGENS, sob o título “Des-samaritanização, em processo dialéctico?”
Acentuo a necessidade de se apostar na criação de grupos paroquias de ação social que integrem as dimensões da assistência de proximidade, da justiça e da paz, da ecologia integral, do apoio aos presos e suas famílias, bem como às vítimas de abusos e suas famílias, à integração de pessoas portadoras de deficiências… Estes grupos poderiam até ter representantes do centro social paroquial e de qualquer outra instituição sócio-eclesial implantada na área geográfica da paróquia.
Estas instituições devem existir na medida em que as necessidades das pessoas o justifiquem e não por razões proselitistas ou por quaisquer outras, tendo como destinatários, preferencialmente, os mais vulneráveis. Os responsáveis têm demonstrado as suas preocupações pela gestão dessas instituições. Isso é necessário, sem dúvida, mas sem descurar a obrigação de cada paróquia ter um grupo organizado e preparado para responder às verdadeiras realidades de cada tempo. Porém, não basta que exista um grupo. É necessário o envolvimento de toda a comunidade, pois só existem dois tipos de agentes: a comunidade cristã e os agentes intermédios.[5] Tudo o resto são meios, concretamente, o testemunho e o serviço[6].
Para esta necessidade também apelou o cardeal Tolentino ao referir que a caridade está no centro do “coração da Igreja”[7] e exige “uma presença e militância no campo social”[8]. Felicito a pertinência e qualidade desta intervenção e admirei a coragem de colocar o “dedo na ferida”, quando referiu o esforço dos papas para que não se deixe para trás a prática ativa, eficaz e digna da caridade, mas que esta pastoral enfrenta o grave problema da “falta de comunhão e coesão”[9].
Essa é a maior dificuldade. O povo diz que “o exemplo começa em casa”; eu, parafraseando-o, digo que a prática da caridade só se torna testemunho a seguir se ela for vivida, primeiro, dentro da Igreja, a nível mundial, nacional, diocesano e paroquial; de resto, não passará de uma teoria e prática desencarnadas e inconsequentes.
Eugénio Fonseca é presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado
[1] cf. https://agencia.ecclesia.pt/portal/igreja-sem-caridade-cristianismo-e-desincarnado-e-teorico-d-jose-tolentino-mendonca/ [consultado em 17-05-2021].
[2] “A expressão “ópio do povo” (ou “ópio social”) tem origem numa obra de Karl Marx intitulada Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, e a passagem exata é a seguinte: “A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo.” (tradução de Eduardo Velhinho) no Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-expressao-opio-social-ou-opio-do-povo/31305 [consultado em 17-05-2021].
[3] cf. Bento XVI, carta encíclica Deus Caritas Est (25 de Dezembro de 2005), Lisboa: Edições Paulinas 2006, 20.
[4] cf. Conferência Episcopal Portuguesa, Instrução Pastoral A Acção Social da Igreja (23 de Novembro de 1997). Lisboa: Secretariado-Geral do Episcopado 1997, 26 e 27.
[5] Ibidem, 24.
[6] Ibidem, 25.
[7] cf. https://agencia.ecclesia.pt/portal/igreja-sem-caridade-cristianismo-e-desincarnado-e-teorico-d-jose-tolentino-mendonca/ [consultado em 17-05-2021].
[8] Ibidem.
[9] Ibidem.