
Mulheres participantes no Sínodo sobre a sinodalidade, 7 Outubro 2023, à saída de uma das sessões da assembleia. Foto © António Marujo/7MARGENS
Ao ouvir certos representantes da Igreja Católica, fica-se com a impressão de que vale quase tudo para afastar as mulheres dos lugares de liderança no interior da instituição. Agora que a pressão sobre as estruturas eclesiais tem vindo a aumentar no sentido de se alterarem as regras de seleção dos candidatos ao sacramento da ordem de modo a incluir também as mulheres, ouvem-se alguns líderes argumentar que a alteração das regras correria o risco de as clericalizar. No entender destes senhores, se o que se pretende hoje é proceder à desclericalização da Igreja, a clericalização das mulheres vai acontecer ao arrepio do principal objetivo da reforma. Interessante, esta argumentação, não é? Parece até que estes altos representantes estão mesmo empenhados em desclericalizar a Igreja!
No que me toca, fico até emocionado com a capacidade que alguns clérigos ostentam em manobrar o edifício lógico do intelecto humano, pondo-o ao serviço das suas visões acanhadas. Na verdade, é fácil perceber que o objetivo de tal argumentação é manter tudo exatamente como até aqui, excluindo as mulheres dos lugares a que têm direito e mantendo intacto o abjeto patriarcalismo de que a Igreja é ainda uma poderosa defensora, tanto na doutrina como no exemplo.
Entre os gregos, era comum a separação entre os filósofos e os sofistas. Pertenciam realmente a grupos bem distintas. Os primeiros usavam os mecanismos intelectuais para procurar, sem reservas pré-estabelecidas, a verdade tal como lhes era possível conhecê-la. Os segundos usavam o mesmo aparelho intelectual, recorrendo a todas as estratégias retóricas disponíveis, para fazer crer que as suas posições eram logicamente necessárias e correspondiam à verdade irrefutável. Os primeiros partiam à descoberta da verdade sem quaisquer preconceitos, aceitando ser surpreendidos pela própria investigação. Os segundos partiam da verdade de que se diziam conhecedores (normalmente coincidente com os seus interesses) e recorriam aos recursos retóricos disponíveis para convencer o seu auditório de que tinham razão.
Muito do que tem sido produzido pela Igreja em matéria de doutrina inscreve-se na tradição sofística. É disso exemplo quase tudo o que se refere à moral sexual e às questões relacionadas com os mecanismos de poder. O próprio Papa João Paulo II foi useiro e vezeiro na arte de manipular a opinião pública da Igreja, por forma a contornar qualquer veleidade reformista. Os exemplos são muitos, mas fiquemo-nos apenas pela Carta Apostólica Mulieris Dignitatem, de 1988, na qual procede habilmente à exaltação elogiosa da figura feminina, ao mesmo tempo que a condena à mais indecorosa subserviência. É claro que, ao realizar a quadratura do círculo, teve de recorrer a todos os artifícios lógico-retóricos ao alcance do intelecto para reafirmar a “verdade” tradicional da subordinação patriarcal da mulher. Outros documentos posteriores sobre o mesmo tema enfermam do mesmo ranço sofístico. No que diz respeito ao papel da mulher na Igreja, os atuais defensores da manutenção das formas patriarcais tradicionais e, portanto, da divisão dos papéis sociais em função do género, com a clara desclassificação da mulher, vêm agora argumentar que a clericalização da mulher está em contradição com o objetivo atual da Igreja. O que dizer a respeito de tão rebuscado argumentário?
Se a ordenação das mulheres for efetivamente a sua clericalização, então teremos de tirar daí as ilações devidas e perceber que a única causa da clericalização é a próprio acesso ao sacramento da ordem enquanto entendido como “poder sagrado”. O que provoca, então, esse cancro que tomou conta da vida no interior da Igreja? A sua manifestação é a divisão estrutural entre uma classe de leigos e uma classe de nível superior, o clero, que adquire legitimidade a partir da sua sagração por meio do sacramento da ordem. A ser assim, só parece haver duas maneiras de resolver a indesejada questão do clericalismo: ou eliminar as “ordens sagradas” – o que é de todo improvável dada o seu enraizamento na tradição – ou reinterpretá-las a partir de uma teologia do serviço que abandone a noção e a prática do “poder sagrado” e instituindo formas de organização mais igualitárias, nas quais o presbítero e o bispo sejam coordenadores de comunidades adultas, dotadas de mecanismos de autorregulação de modo a que a sua vida quotidiana não dependa da mera autoridade de uma única pessoa, mas do consenso comunitário.
Obviamente, nada disto depende de as mulheres acederem ou não às ordens. São duas questões inteiramente distintas. Resolver a questão do clericalismo não passa pela negação do acesso das mulheres aos lugares de liderança, mas pelo reequacionamento da função do diácono, do presbítero e do bispo (já para não falar do cardeal e do papa, que são funções independentes do sacramento da ordem). As duas reformas podem e devem ser realizadas em paralelo. Mas é de todo incompreensível que as mulheres continuem a ser discriminadas sob o argumento falacioso de que poderão também elas sofrer um processo de clericalização indesejado. Se a verdadeira motivação dos que argumentam desta maneira fosse realmente resolver o problema do clericalismo, proporiam certamente reformas mais ajustadas à consecução desse objetivo.
A situação atual é insustentável. Estamos num momento de crise, numa encruzilhada que nos obriga a tomar decisões e a reformar o que precisa de ser alterado. No meio de todos os problemas pelos quais tem passado a Igreja, a questão do papel da mulher é central e vai determinar o depauperamento das igrejas através da sangria de grande parte dos seus membros secularmente mantidos sob tutela masculina ou, pelo contrário, o revigoramento das comunidades nas quais ninguém é excluído de qualquer cargo pelo mero facto de pertencer a um determinado género.
Jorge Paulo é católico e professor do ensino básico e secundário.