Nada indicava que a Igreja Católica em Portugal saísse tão rapidamente da letargia em que mora, há muito, sobretudo no que respeita a abusos sexuais de menores, praticados por um clero infantilizado e doentio. Das hesitações na assembleia plenária de Fátima, no dia 11 de Novembro, à mão determinada do presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas, bispo de Setúbal, em menos de um mês, a 2 de Dezembro, constituía o que parecia impossível: uma comissão independente e autonomizada da Igreja Católica.
O pedopsiquiatra Pedro Strecht era escolhido para presidir à nova Comissão. Tinha como objectivo “dar voz ao silêncio” e, com passos pedagógicos, “conhecer o passado e planear o futuro”. Uma comissão para chegar às pessoas fragilizadas na sua condição de vítimas.
É uma comissão de estudo e não de investigação judicial e criminal. Esta é a diferença. Todas as outras diligências são entregues à competência da Polícia Judiciária e aos tribunais. Sem cheiro a velas ou a sacristia pretende-se actuar em lugar descaracterizado (a apresentação desta Comissão foi feita na Gulbenkian, em Lisboa), para manter o total anonimato e conhecer, nestes casos, a pequena parte que resta da memória castigada. A psicologia sabe que, com o passar dos anos, é difícil, para estas vítimas, ousar falar. O campo de exposição é, normalmente, de vergonha, por isso, se exige recato e sigilo.
Competência ao serviço do humanismo
Conhecendo as limitações que impendem sobre os prelados que integram a Conferência Episcopal Portuguesa e retirando-se dos “preconceitos e encobrimentos”, que caracterizavam a cultura deste pérfido silêncio, abundante em vários países católicos, D. José Ornelas tomou a solução possível, recorrendo à ciência das diferentes competências disciplinares. Na referida conferência de imprensa, o antigo superior geral da Congregação Dehoniana, a que pertence o líder dos prelados portugueses, depôs perante a comunicação social presente, toda a confiança no presidente da comissão: Pedro Strecht, psiquiatra de 55 anos, com longa experiência no tratamento de crianças e adolescentes.
Fruto de “erros estruturais”, os abusos sexuais do clero a menores são, na opinião do presidente da CEP, “injustos, cruéis e inumanos”. A comissão revela “genuína vontade” da parte da Igreja, no pensar do seu mentor. Entra em funções neste início de Janeiro e é composta por seis notáveis das ciências jurídicas e pedagógicas, vestidos de humanismo: Laborinho Lúcio, juiz conselheiro, antigo ministro da Justiça e escritor; Ana Nunes de Almeida, socióloga e investigadora do Instituto de Ciências Sociais, com extenso trabalho com crianças em risco; Daniel Sampaio, psiquiatra e professor catedrático laureado, da Faculdade de Medicina de Lisboa; Filipa Tavares, assistente social e terapeuta familiar; e Catarina Vasconcelos, cineasta, tendo em conta a sua especial sensibilidade para os comportamentos humanos.
Outros profissionais da sociedade civil poderão ser chamados a integrar esta comissão, como os professores do ensino escolar. Solicita-se também a melhor colaboração da comunicação social, gerida, naturalmente, por preceitos éticos e não com ousadias que possam elevar, tão só, as audiências. Um acto de coragem histórico este, da Igreja Católica portuguesa, a abrir portas fartas de silêncio…
Quem vai pagar os pecados da Igreja?
Envolvido em questões morais sobre a sexualidade, inflaccionadas no cumprimento de leituras anacrónicas, o Direito Canónico da Igreja Católica vai ter de rever conceitos históricos, sobretudo no que respeita à homossexualidade e, no caso do clero, a essa abominável lei do celibato obrigatório, responsável por anomalias inomináveis.
A presença na praça pública, nos últimos 20 anos, de casos de pederastia no seio da Igreja Católica, obrigou a que se desencadeasse o ressarcimento às vítimas, muitas delas na dependência física e de responsabilidades sociais de instituições religiosas. Foi, por isso, que muitas dioceses, com especial incidência nos Estados Unidos, Canadá, Irlanda, França e Austrália entraram em falência técnica com a entrega de milhões de dólares e euros, para o resgate do perdão das vítimas. Quantos casos vão ser descobertos nas démarches que agora começam nas dioceses portuguesas? Será a Igreja Católica que está em Portugal mais fiel que outras no mundo? A diferença morará apenas nas apreciações jurídicas dos tribunais portugueses? A CEP já disse que cumpriria com todos os encargos desta comissão independente. Terão as dioceses portuguesas meios financeiros para acudirem às vozes das vítimas que, apesar da dificuldade, vão, certamente, aparecer?
Depois da pandemia da covid-19, que outra epidemia estará à espreita, em colégios e seminários, igrejas e sacristias e em tantas instituições de bem-fazer, dispersas pelo país?
Novos rumos se impõem à Igreja Católica em Portugal a correr o risco da falta de credibilidade e, consequentemente, da perda dos crentes, que outrora encheram templos. Acabou a indústria das igrejas. Lá dentro, santos sem devotos. Silêncio sem espiritualidade. Incenso sem adoradores. Orações sem eficácia. Ao cristianismo, parece ter-lhe morrido o espírito do Nazareno.
Manuel Vilas Boas é padre e jornalista.