
Podemos perder alguma saúde, alguma economia, mas que não se perca a dignidade de cada um e a humanidade que deve presidir às relações sociais, em especial para com os mais fracos e vulneráveis. Foto © Misericórdia de Bragança.
A pandemia tem-nos afectado a todos de diversas maneiras, mas não há dúvida de que são as crianças e adolescentes, os doentes e os idosos os que pagam a maior factura.
Não são apenas os confinamentos que introduzem factores de perturbação na vida e desenvolvimento das crianças e adolescentes, que vão perdendo competências sociais, físicas e cognitivas todos os dias. Também os doentes hospitalizados deixaram de poder contar com o apoio de humanização prestado pelos corpos de voluntariado na saúde.
Os mais de seis mil voluntários que prestam serviço nos hospitais de todo o país – batas amarelas – ficaram impedidos de entrar naquelas unidades de saúde por serem considerados grupo de risco, uma vez que são maioritariamente cidadãos reformados e com mais de 65 anos. Deste modo, os doentes não-covid perderam a oportunidade de contar com algum tipo de acompanhamento não profissional.
Segundo o testemunho de um voluntário: “Há muitos doentes pura e simplesmente abandonados à sua sorte nos hospitais, sem atenção, sem carinho, sem aquele elo fundamental de humanidade que faz toda a diferença para quem está em situação de doença grave, muitas vezes só, ou com a família distante. E a culpa não é dos profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, assistentes operacionais –, que não têm mãos a medir.” Perdeu-se assim um elo vital para os doentes não-covid e receia-se que o futuro deste tipo de voluntariado possa mesmo estar comprometido.
Desde o apoio humano prestado aos doentes nas enfermarias, no trato personalizado, na disponibilização de revistas para ler, no suporte dado aos profissionais, no café com leite e bolachas oferecido aos utentes nas consultas externas, os quais muitas vezes saem de casa de madrugada e sem nada no estômago, à atenção e apoio dados aos doentes em tratamento ambulatório, mormente nos serviços oncológicos, a função do voluntariado hospitalar é um contributo social e humanitário importantíssimo num Serviço Nacional de Saúde com défice crónico de profissionais.
Compreende-se a preocupação em proteger estes cidadãos de contágio viral da covid-19, mas a decisão não teve em conta as necessidades dos doentes. Imagino até que parte destes voluntários ou suas famílias terão receado o quadro pandémico e tomado a decisão de suspender a sua actividade, pelo menos temporariamente.
Coisa idêntica estará a suceder com as universidades seniores um pouco por todo o país. Tais espaços de socialização, de desenvolvimento físico, emocional, social e cognitivo, foram praticamente suspensos e apenas uma ínfima parte dos alunos terão aderido a aulas online, uma vez que a vertente essencial deste tipo de actividade passa pelas relações interpessoais nas aulas mas também em passeios, visitas e viagens de estudo e convívios.
Estamos, portanto, perante não apenas um tempo novo que tem vindo a destruir o que de bom se conseguiu ao longo das últimas décadas, mas também face a uma situação que contribui para que os indivíduos vivam vidas mais solitárias, vulneráveis e susceptíveis de distúrbios emocionais, que agravará decerto o panorama da saúde mental das populações mais idosas. A falta de estímulos e desafios, o peso da solidão e a ausência de calor humano apresentarão uma factura pesada.
Quando se estuda a história dos núcleos humanos entende-se que do clã se passou à família multigeracional, que incluía filhos, pais e avós, e desta à bigeracional, composta por pais e filhos, sendo que agora os avós vivem sozinhos e os filhos cada vez mais afastados dos pais, já para não falar na progressiva desestruturação familiar, causa de tantas famílias disfuncionais. E não nos iludamos com os amigos virtuais, tipo Facebook, que não respondem às necessidades sociais intrínsecas ao ser humano.
Podemos perder alguma saúde, alguma economia, mas que não se perca a dignidade de cada um e a humanidade que deve presidir às relações sociais, em especial para com os mais fracos e vulneráveis.
Espero bem que, passada esta onda pandémica, a aproximação social regresse em força, pois se os apertos de mão, beijos e abraços fazem tanta falta, são ainda um garante desta nossa humanidade partilhada, a qual, apesar de todas as dificuldades e conflitos potenciais em qualquer universo colectivo, constitui uma expressão visível e genuína da condição humana.
José Brissos-Lino é director do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona, coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo e director da revista teológica Ad Aeternum; texto publicado também na página digital da revista Visão.