A culpa não é minha!
O tema da culpa está muito presente nas religiões desde sempre, em especial no cristianismo. O sentimento de culpa é tão forte e desagradável que as pessoas, logo desde a infância, procuram remeter a culpa para os outros, de forma instintiva, sacudindo a água do capote.
Jean Bottéro, antigo padre dominicano que estudou profundamente a Mesopotâmia, investigou os mecanismos do pecado e da culpa. Nas religiões primitivas, parece que os seres humanos andariam apavorados face aos fenómenos atmosféricos que não compreendiam nem controlavam, com medo dos perigos e do desconhecido, lutando diariamente pela sobrevivência, mas não sabiam o que era o peso da culpa. Até que, há cerca de quatro ou cinco mil anos, começou a ser introduzido no imaginário colectivo o sentimento de culpa. Se o indivíduo perdia a colheita, se lhe morresse um filho ou se o seu animal de carga adoecia tal não seria devido às vicissitudes da vida, à má fortuna ou aos caprichos dos deuses, mas porque tinha feito qualquer coisa errada para merecer tal punição. Acabara de surgir a ideia de pecado.
Inicialmente, o conceito de pecado não se referia a uma transgressão do pecador na sua vida de cada dia, nem tinha uma carga moral. Resultava apenas de algum erro inconsciente na invocação dos deuses. O indivíduo associava então a violência dos elementos e a adversidade a algum erro eventualmente cometido na liturgia do animal previamente sacrificado. Era um pecado inconsciente, mas o adorador interiorizava uma culpa própria. Essa invenção mesopotâmica resultou na transferência de culpa dos poderes divinos para os homens. Martín Caparrós diz que os indivíduos descobriram então que estavam enganados: “eram eles que causavam as desgraças e deviam saber como e porquê. Os deuses eram como aqueles pais que batem no filho enquanto dizem que ele já sabe porquê.”
Sendo assim, o cristianismo deu um passo em frente ao propor um código de conduta associado à ideia de pecado. Daí resultou autonomia pessoal, já que agora os indivíduos poderiam decidir se queriam ou não quebrar as regras, como e quando. A culpa continuava a ser própria mas o castigo passava a fazer sentido e a ser associado a uma causa perceptível à consciência. Todo o mal resultava sempre dos pecados dos homens, pois Deus era infinitamente justo. Foi o que aconteceu na justificação do terramoto de Lisboa em 1755, uma catástrofe que chocou o mundo, quando o coração do Império Português ficou reduzido à insignificância. O padre Malagrida convocou o povo e a corte ao arrependimento, tomando a catástrofe como resultado da ira divina contra a corrupção da sociedade.
Porém, agora nem da culpa somos donos. As religiões perderam o seu principal instrumento de controlo e o indivíduo passou a atribuir a sua culpa aos grupos, ao sistema, à sociedade, aos políticos, aos economistas, aos ricos, aos imigrantes, aos “infiéis”. O diabo são os outros, a culpa nunca encontra com quem casar e acaba por morrer solteira.
Depois, ainda há o caso de alguns grupos neopentecostais que infantilizam a pessoa, atribuindo a culpa de todos os males à possessão demoníaca. É simples: se o pai é alcoólico é porque está oprimido pelo “demónio do álcool”, se o marido agride a mulher é porque está possuído pelo “demónio da violência” e tem que ir a uma reunião de culto na igreja para o pastor fazer uma oração a fim de expulsar tais entidades. Infantilização e controlo.
Paul Tournier entende que a culpabilidade está ligada à relação com os outros, às críticas alheias, ao desprezo social e ao sentimento de inferioridade, sem esquecer as questões religiosas que suscita. O psiquiatra estabelece um elo entre remorso, constrangimento, consciência pesada, vergonha, timidez e até modéstia, partindo do princípio de que o sentimento de culpa é inerente ao ser humano, como um alerta de que alguma coisa foi feita de forma errada e contrapõe a graça de Deus como uma resposta: “a consciência culpada é a constante da nossa vida. Toda a educação, em si mesma, constitui um cultivo intensivo do sentimento de culpa, mesmo a melhor educação que se recebe de pais preocupados.”
Passámos assim duma culpa difusa a uma culpa com sentido e, depois, a uma inocência a toda a prova, fazendo coro com o mito do “bom selvagem” de Rosseau. As pessoas são boas, a sociedade é que não presta. Como se a sociedade não fôssemos todos nós. Sabemos que a melhor maneira de retirar conteúdo a uma palavra ou conceito é vulgarizá-lo. A banalização da culpa por via de religiões castradoras e inquisitivas desembocou num humanismo sem alma, artificial e infantil, onde ninguém é responsável por coisa nenhuma.
A resistência em assumir a responsabilidade ou mesmo a culpa pelos erros cometidos retira aos indivíduos a oportunidade do perdão (pedir e receber), essa função social e espiritual altamente libertadora, e impede uma correcção dos procedimentos no futuro. Pois é. Só os burros é que não mudam. E mesmo assim tenho dúvidas.
José Brissos-Lino é director do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona e coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo; texto publicado também na Visão Online.
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