História, exegese e teologia

A data do Natal e a mitologização do Verbo Encarnado

| 6 Jan 2022

Ícone da Epifania

Ícone da Epifania

 

É comum hoje criticar-se a celebração do Natal não somente pelo aspecto consumista, que adquiriu desde princípios do século passado (aspecto de resto criticado implacavelmente pela imensa maioria dos ministros cristãos, e mais decorrente duma mentalidade secularizada que propriamente da piedade cristã), como ainda pela sua própria data a 25 de Dezembro que, segundo dizem, é incorrecta historicamente e terá sido “usurpada” pelos cristãos a um qualquer culto pagão, com o propósito oportunista de tornar a Igreja dominante em todo o Império Romano.

Esta crítica ocorre tanto em determinados meios cristãos evangélicos – alguns radicalmente contrários ao Natal, que consideram uma Festa essencialmente pagã – como em meios não-cristãos, quer se tratem de ateístas (militantes ou não), agnósticos indiferentes à religião mas com um gosto característico por um certo verniz de intelectualidade e, mais recentemente, neopagãos, dos quais uma mínima parte parece prezar a história e o estudo desapaixonado das fontes documentais, enquanto imensa mole ecoa sem qualquer reflexão os lugares-comuns da cultura massificada.

Há que dizer que, examinadas as fontes antigas – cristãs ou não-cristãs, bíblicas ou extra-bíblicas – esta teoria se revela vácua, baseada em anacronismos e em conjecturas tão frágeis quanto teias de aranha. É relevante notar o seu carácter multiforme – como hidra ou serpente de muitas cabeças que, quantas mais se lhe corte, mais cabeças lhe crescem, em teorias mutuamente inconciliáveis – pois ora dizem ter sido a data e a própria celebração do Natal uma apropriação do culto latino do Sol Invicto, ora das Saturnálias, ora do culto egípcio a Horus, ora do culto persa a Mithras, ora de deuses nórdicos. É impossível todos estarem certos, ao mesmo tempo! Iremos aflorar apenas alguns desses tópicos que, uma vez aclarados, poderão servir de fundamento para examinar e “medir o peso” ou o valor de tais teses.

 

Breve parêntese

Antes de avançar com a nossa exposição, e para evitar confusões desnecessárias, convém notar que a Igreja Ortodoxa, ao contrário do que ‎comummente se ‎pensa, não comemora o Natal em Janeiro. A diferença de ‎datas se deve ao facto de muit‎as Igrejas Ortodoxas terem preservado o ‎Calendário Juliano, anterior à ‎reforma do calendário ‎promovida no ano de 1582 AD pelo Papa ‎Gregório XIII. Isto faz com que a ‎data de 25 de Dezembro, no calendário litúrgico Ortodoxo, ‎coincida com a data de 7 ‎de Janeiro, no Calendário Gregoriano.

Todavia, dado o facto de ‎algumas Igrejas ‎Ortodoxas Locais terem adoptado o Calendário Juliano ‎Reformado, em ‎que o ciclo fixo dos dias do mês é idêntico ao do Calendário ‎Gregoriano, ‎estas Igrejas celebram o Natal a 25 de Dezembro.‎

Em todo o caso, o que importa reter é que a Igreja Ortodoxa ‎não comemora o Natal no dia da Epifania, ou “dos Reis Magos”, há pelo ‎menos mil e quinhentos anos.‎

 

Natal, Festa da Encarnação do Verbo

Como em toda a mentira, que se compõe ou traveste de meias-verdades para parecer mais credível e fidedigna, tais teorias se coadunam com algo de essencialmente verdadeiro: o Natal não é mera festa de aniversário do Menino Jesus, a quem Deus teria abençoado com a Sua visitação e com uma espécie de união moral (como o faria a um Santo ou Profeta), como ensinava o Nestorianismo. Não se trata do aniversário de um evento (apenas) humano, familiar, biológico, mas de um evento cósmico que marca de modo singular a História Sagrada, da intervenção e presença divinas na criação.

O Natal é acima de tudo a Grande Festa da Encarnação do Verbo de Deus, cujo nome completo, nos livros litúrgicos gregos, é Hē katà Sárka Génnēsis toû Kyríou kaì Theoû kaì Sotē̂ros hēmôn Iēsoû Christoû – a Natividade segundo a carne do Senhor e Deus e Salvador Nosso Jesus Cristo.

Ícone dos Santos Padres do Primeiro Concílio Ecuménico

Ícone dos Santos Padres do Primeiro Concílio Ecuménico

Dizemos “natividade segundo a carne”, porque em Cristo houve dois nascimentos: um eterno, no Céu, do seio do Pai, sem o concurso de uma mãe, antes de todos os séculos – e outro nascimento, no tempo, do seio da Virgem Santa, em Belém de Judá, sem o concurso de um pai terrestre, pelo poder do Espírito Santo. Os dois nascimentos correspondem exactamente às duas naturezas de Cristo – uma divina, eterna, incriada, transcendente, incircunscrita (isto é, não delimitada ou circunscrita por limites espaciais), imortal, impassível, e outra natureza, humana, temporal, criada, imanente, circunscrita (delimitada espacialmente), mortal e passível.

E estas duas naturezas, de qualidades ou atributos diametralmente distintos, foram unidas na Pessoa de Cristo, Mediador entre Deus e o homem. É este, em termos cristológicos, o conteúdo da Boa-Nova ou Evangelho, resumido na fórmula dogmática concisa: Cristo, uma só Pessoa ou Hipóstase divina em duas naturezas, o que se realizou no momento singularíssimo da Encarnação.

E estas duas naturezas, de qualidades ou atributos diametralmente distintos, foram unidas na Pessoa de Cristo, Mediador entre Deus e o homem. É este, em termos cristológicos, o conteúdo da Boa-Nova ou Evangelho, resumido na fórmula dogmática concisa: Cristo, uma só Pessoa ou Hipóstase divina em duas naturezas, o que se realizou no momento singularíssimo da Encarnação.

O Pai é a fonte, ou causa eterna do Verbo – contudo, na ordem divina não se aplica o princípio temporal de que a causa deve preceder no tempo a consequência ou efeito. Caso se aceitasse uma precedência no tempo do Pai, em relação ao Filho, enquanto Sua causa, seria necessário crer que houve um tempo em que não existia o Filho de Deus, que teria sido trazido do nada ao ser pelo Pai. Isto faz do Verbo de Deus mera criatura, e foi exactamente este o erro de Ário, anatematizado pela Igreja, no Primeiro Concílio Ecuménico, reunido em 325 AD em Niceia.

É exactamente por isso que dizemos no Credo, a respeito do Filho, que é “nascido do Pai, antes de todos os séculos (isto é, antes ainda da criação do tempo, acima e além do tempo) … gerado, não-criado, coessencial ao Pai (isto é, da mesma essência, ou natureza, ou substância divina incriada). Geração é o termo bíblico e teológico de eleição para nascimento, na tradição teológica de língua latina, sendo o agente da geração o progenitor, o pai ou a mãe, e não o que é nascido ou gerado.

Esta natividade eterna do Verbo transcende, de forma absoluta, é claro, toda a cronologia – e, quanto à segunda natividade, no tempo, a data precisa não é (absolutamente) essencial, razão por que não foi registada explicitamente nos Evangelhos.

 

Dimensão cósmica da Encarnação

Como começamos por dizer, Cristo não se trata de mero menino que se fez “deus” como recipiente da graça, misericórdia e eleição divina, mas antes do próprio Deus Verbo que Se faz homem, descendo da Sua glória e majestade, assumindo em tudo a nossa condição mortal e passível, isto é, sujeita ao sofrimento físico e moral. E a salvação que o Verbo humanado vem trazer não é meramente vis-à-vis a alma do indivíduo que o reconhece como Salvador, mas uma regeneração cósmica, que envolve toda a criatura, na sua dimensão física e espiritual, que será glorificada no século futuro, com a Ressurreição dos mortos em corpos gloriosos, impassíveis.

É este o significado teológico e anagógico (isto é, referentes às realidades do mundo futuro) das figuras pitorescas dos animais do presépio que vêm louvar o Senhor Encarnado juntamente com os pastores e os magos – tudo quanto respira louve o Senhor. Esta é a vocação última da criação, restaurada pela Encarnação do Verbo e consumada à perfeição no século futuro.

Também neste quadro, o aspecto meramente cronológico do aniversário natalício perde relevo.

 

Festas Litúrgicas: a memória de eventos sagrados

Além disso – em termos da tradição litúrgica das Igrejas de origem Apostólica – estas não se limitam a comemorar dias aniversários da natividade ou da morte (nascimento para os Céus). Muitas festas, historicamente, surgiram de outras datas como a da sagração de igrejas ou basílicas importantes, da trasladação das relíquias de Santos, da data da sua glorificação pela Igreja (em linguagem ocidental, da sua canonização), e assim por diante. Muitas festas comemoram eventos históricos, localizáveis no tempo, ao passo que outras são de carácter mais teológico que cronológico – são por vezes chamadas Festas “de ideia”.

Ícone da Teofania (Baptismo do Senhor)

Ícone da Teofania (Baptismo do Senhor)

É sabido que, na Igreja chamada “primitiva”, dos três primeiros séculos, em muitas regiões se comemorava numa só Festa litúrgica o Nascimento e o Baptismo do Senhor, a 6 de Janeiro, data hoje reservada à Epifania ou Teofania, isto é, a manifestação divina da Trindade aquando do Baptismo do Senhor nas águas do Jordão. Comemoravam-se juntamente as diversas teofanias ou manifestações de Cristo: a Sua Natividade, a manifestação aos Magos, e o Seu baptismo (e também, nalgumas regiões, também o primeiro sinal ou milagre público do Senhor, nas Bodas em Caná da Galileia). Este é ainda hoje o uso litúrgico entre os Coptas, de confissão monofisita mitigada ou severiana, chamada “miafisita”.

Este vínculo entre as duas festas (que ainda hoje subjaz ao ciclo litúrgico do Natal e Teofania como Festas das Luzes) é notoriamente mais teológico que cronológico, sendo o Baptismo o segundo nascimento do cristão, segundo a ordem da graça, para a adopção como filho de Deus, ao passo que o primeiro nascimento, do ventre materno, ocorre segundo a ordem da natureza e da criatura.

No caso singularíssimo do Baptismo do Senhor, não se trata, como pensava Nestório, do momento do Seu renascimento espiritual enquanto Filho de Deus. Ensinam os Padres da Igreja, unanimemente, que não foi Cristo lavado, purificado, regenerado ou salvo pelas águas do Jordão, mas antes foram as águas lavadas, purificadas e regeneradas pelo poder do Espírito Santo, e tornadas instrumento de salvação dos homens no ministério do Baptismo pela água e pelo Espírito.

É Santo Ambrósio de Milão que, no seu tratado sobre os Sacramentos, nota com perspicácia a distinção entre o nosso Baptismo e o do Senhor: no nosso, antes de tudo, o sacerdote invoca a descida do Espírito Santo sobre as águas (epiclese), de modo que estas adquiram poder purificador e salvífico, e a seguir é o catecúmeno imerso nas águas, sendo lavado e regenerado. Mas no Baptismo do Senhor passa-se o contrário: primeiro desce Ele às águas, pelas mãos do Precursor, e, quando delas ressurge, manifesta-Se sobre Ele o Espírito em forma de pomba, e se ouve a voz do Pai dizendo “Este é o meu Filho bem-amado, escutai-o”.

Cristo desceu, e o Espírito Santo desceu também. Por que Cristo desceu por primeiro e depois o Espírito Santo, enquanto a forma e o uso do [nosso] baptismo supõem que seja primeiro a fonte consagrada e depois desça aquele que nela vai ser baptizado? De facto, primeiro entra o sacerdote, faz o exorcismo sobre a criatura que é a água, depois faz a invocação e a prece para que a fonte seja santificada e aí esteja a presença da Trindade eterna. No entanto, Cristo desceu antes, seguido pelo Espírito. Por que motivo? Para que não parecesse que o próprio Senhor Jesus tivesse necessidade do mistério da santificação, mas Ele próprio santificasse e também o Espírito santificasse. (Santo Ambrósio de Milão, Dos Sacramentos, Livro Primeiro, 18).

 

Simbolismo cósmico do solstício do inverno
Ícone da Criação da Luz pelo Verbo pré-Encarnado

Ícone da Criação da Luz pelo Verbo pré-Encarnado

Há todo um simbolismo cósmico e astronómico que encontramos nas festividades pagãs ligadas aos solstícios e equinócios, celebrando o ciclo das estações e a fecundidade da natureza, parte inseparável da vida de sociedades agrárias e pastoris, e adorando os astros celestes, que identificam como autores e doadores da vida, e fecundadores da natureza.

Diz-se, com razão, que este simbolismo foi cristianizado: as Escrituras – Velho e Novo Testamento – não mais deificam o sol, a lua e demais astros celestes, e desde o próprio livro do Génesis, no seu relato da criação, não há espaço para tal. Por primeiro, porque este descreve sol e lua como criaturas, trazidas do nada ao ser pelo Verbo divino criador e vivificante. E em segundo lugar, porque sequer nomeia sol e lua – como o faziam os pagãos que os personificavam e deificavam – mas determina a sua função subsidiária, para iluminar terra, para separar o dia da noite, e como sinais para marcar os tempos e estações. E os chama estritamente de acordo com tal função, como luzeiro, luminar ou luminária maior, e o luzeiro, luminar ou luminária menor.

Assim, sol, lua e estações, com toda a beleza, regularidade e utilidade crucial da harmonia das esferas para a própria conservação e florescimento da vida, são desmitificados, não mais sendo vistos como deuses conscientes e autónomos, aptos a decidir ou influenciar o nosso destino. Antes, esta harmonia das esferas com os seus multiformes benefícios dá testemunho da Sabedoria incriada (outro nome do Verbo divino), que tudo fez com propósito, peso, conta e medida, e uma beleza que maravilha e abre a alma à contemplação do divino.

Os cristãos não mais adoram o Solis Invictus, o Sol Invencível, que após a noite mais longa do ano, quando seria aparentemente devorado pelas trevas, se reergue e volta, mais uma vez, a ascender na sua carruagem para derramar sobre os mortais uma luz e calor mais abundantes, que trará de volta toda a fecundidade da primavera e verão. Ao contemplar este ciclo natural, glorificam o Criador, e adoram o verdadeiro Sol de Justiça profetizado por Malaquias, o Cristo que ilumina todo o homem que vem ao mundo (João 1:9).

Este mesmo Cristo é tragado pelas trevas da morte, descendo em alma ao Hades e de lá resgatando todos os justos que lá jaziam, e Se reergue vitorioso sobre a morte e o pecado, sendo as primícias do Reino onde o sol não tem ocaso.

Ícone da Ressurreição (Cristo liberta Adão e Eva do Hades), pintado no Mosteiro do Nascimento da Mãe de Deus

Ícone da Ressurreição: Cristo liberta Adão e Eva das trevas do Hades. Pintado no Mosteiro do Nascimento da Mãe de Deus (Vila Franca de Xira). 

 

O Natal é a Festa da Luz que raiou aos que estavam assentados na região e sombra da morte (Mateus 4:16). O Deus-Menino nasce à noite, já destinado a passar pela Sua morte salvífica. Os ícones da Natividade retractam o Menino, envolto em faixas (que evocam as faixas funerárias do Seu futuro sepultamento), na manjedoura, numa gruta sem qualquer fonte externa de luz, que representa a nossa condição caída e tenebrosa – todavia, não há sobre Ele sinal de qualquer sombra, mas antes o Menino é a própria fonte de luz. Este é um dos muitos exemplos de como uma representação pictórica não-naturalista pode ser muito mais apta a exprimir uma verdade espiritual do que todo o realismo da pintura em perspectiva naturalista, assentada necessariamente na fonte de luz, bem como nos contrastes entre luz e sombra, ou chiaroscuro.

Ícone da Natividade de Nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo, pintado no Mosteiro do Nascimento da Mãe de Deus

 

A partir da Sua Natividade segundo a carne, o Deus-Menino cresce na manifestação da sabedoria e da graça que n’Ele repousava – não que Lhe faltasse a plenitude de toda a graça e sabedoria, mas antes estas se foram progressivamente manifestando de forma consentânea à Sua idade cronológica enquanto homem, até a plenitude da manifestação do Amor divino no sacrifício da Cruz, e da glória divina partilhada aos homens na Ressurreição e Ascensão aos Céus.

O ciclo litúrgico reflecte organicamente – e, porque não dizer, astronomicamente também – esta realidade, celebrando a Natividade na noite mais longa do inverno, quando a Luz incriada desponta os Seus primeiros raios sobre a terra, como a estrela da manhã; e celebrando a Ressurreição a seguir ao Equinócio da Primavera, quando a natureza está em flor; e celebrando o Pentecostes, ou descida do Espírito Santo, perto do solstício de verão, no tempo da colheita. E foi o Pentecostes o nascimento visível da Igreja, quando os discípulos e apóstolos perderam todo o temor e partiram em todas as direcções do mundo anunciando a Boa-Nova. É o Espírito Santo que completa ou conduz à perfeição ou consumação a obra salvífica de Cristo, gerando Santos nesta imensa seara da salvação.

Ícone do Pentecostes (Descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos), pintado no Mosteiro do Nascimento da Mãe de Deus

Ícone do Pentecostes, Descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos. Pintado no Mosteiro do Nascimento da Mãe de Deus.

 

Poderíamos mencionar ainda outras Festas do ciclo fixo do ano, como a da Anunciação, a 25 de Março, que é o prólogo ou as primícias da nossa Salvação e cujo sentido teológico bem pode ser definido como primaveril. Ou ainda, a 24 de Junho, pelo dia mais longo do ano, a Natividade de São João Baptista, do amigo do Esposo que disse “é necessário que Ele (o Cristo) cresça e que eu diminua”. Com seis meses e um dia de diferença, as duas natividades são diametralmente distintas, em termos astronómicos e simbólicos: o Cristo nasce na noite mais longa, que cederá lugar à luz; ao passo que o Precursor nasce no dia mais longo, alumiando o caminho para o Cristo, mas a sua luz deve decrescer perante o Senhor porque não era ele a Luz, mas [veio] para que testificasse da Luz (João 1:8).

Ícone da Natividade de São João Baptista

Ícone da Natividade de São João Baptista

 

Da Providência Divina neste simbolismo cósmico

Ao meditar sobre tal simbolismo como que impregnado no nosso ciclo litúrgico, ocorre todavia que o grande Protagonista é por vezes esquecido. Alguém, plenamente convencido da beleza e verdade de tais símbolos – que os Padres e a Liturgia usam, embora com sobriedade – poderia pensar que a Igreja foi extremamente arguta em assim determinar a data das Festas, num todo perfeitamente orgânico e coerente, inconsútil, sem costuras ou clivagens, apto a comunicar a Revelação divina eficazmente em símbolos anunciados pela própria ordem natural, ainda que sem necessária correspondência com a história e cronologia sagrada correspondente aos factos e datas.

Os que se deixam transportar, arrebatados, por esta visão interior de glorificação do homo ecclesialis (colectividade visionária, apta a simular ou imitar por uma sorte de arte sagrada a ordem da natureza, plasmando no ciclo litúrgico um microcosmos à imagem do macrocosmos criado directamente das mãos de Deus), glorificam a criatura em vez do Criador e não consideram nem cogitam a própria Providência divina, que tudo guiou ou dirigiu de modo a que tais eventos tenham ocorrido, de facto, histórica e cronologicamente em tempos e estações impregnados eles próprios de significado analógico, apto a representar por sombras e figuras as realidades divinas, significados estes inerentes ao próprio mistério da criação.

A criação e a história não deveriam ser consideradas à parte do mistério divino, por exercício de abstracção e análise, sob pena de tudo esvaziarmos de propósito e sentido, que radicam no mistério de Deus. O homem não se conhece a si mesmo, donde veio, para onde vai e por que vai, se não contemplar a face deste mistério. Nem tampouco conhece a própria criação e a história humana, se não à luz de Deus, e tudo reduz ao que lhe é familiar: riquezas, prazeres, poder. Pode-se dizer que todas as ideologias, filosofias ou escolas de conhecimento do homem, na sua vertente individual ou social, caem num destes três reducionismos, que na verdade se fundam nas três paixões ou pulsões básicas do homem (descritas pelos Padres do Deserto desde o século III, por ascetas como Evágrio Pôntico ou São Macário do Egipto), tomadas como se fizessem parte da natureza primordial do homem.

 

 A importância da data do Natal

A data do Natal, pode-se dizer, está para a fé cristã como Pilatos no Credo: um nada que é muito, que é parte ínfima do todo sem a qual o todo não seria o que essencialmente é.

Pilatos aparece no Credo de Niceia-Constantinopla como a figura que ancora os acontecimentos salvíficos da Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo num contexto histórico muito preciso, o da Judeia do século I, sob domínio romano, na plenitude dos tempos, quando havia paz em todo o Império e a Boa-Nova se podia propagar mais amplamente sob o benefício de uma língua comum e de uma rede de estradas e comunicações.

É este escândalo da singularidade – o de Deus Se fazer homem sob condições únicas, singulares – que nos certifica que o Evangelho não é mero mito, descrevendo algum acontecimento meta-histórico ocorrido in illo tempore, na aurora atemporal dos deuses. Os Padres da Igreja distinguiam a teologia propriamente dita (que tratava da vida atemporal e supratemporal da Trindade Santíssima) da economia ou dispensação divina, isto é, do plano salvífico de Deus em vista à salvação dos homens, realizado pela Encarnação, Paixão, Morte e Glorificação do Verbo – a economia divina abrangeria aquilo que hoje se denomina Cristologia e Soteriologia, e trata exactamente da acção divina no tempo e na história humana.

É esta mesma singularidade que faz real a humanidade assumida por Jesus, e não mero fruto da imaginação mítica ou da abstracção metafísica. Pois faz parte da condição humana o viver sob o signo do tempo, lugar, cultura, língua, conjuntura social e política e assim por diante.

Pode-se dizer que uma ênfase excessiva na data histórica do “aniversário” do Senhor revela um certo Nestorianismo, cindindo a natureza ou aspecto humano de Cristo da Sua dimensão e natureza divina.

Por outro lado, o desprezo pela data e por todo o aspecto histórico revela um pendor Monofisita, negando na prática a realidade da Encarnação do Verbo, e conduzindo em última instância à negação da própria existência histórica de Jesus de Nazaré – corolário que ateus e neopagãos não se coibiram de abraçar (bem como alguns teólogos académicos), não obstante a abundância de documentos em contrário.

 

Testemunhos antigos da data do Natal

Dito isto, consideremos alguns testemunhos antigos da data do Natal.

Nas Constituições Apostólicas (secção 3, 13) é dito: “Irmãos, guardai os dias de Festa; e antes de tudo a Natividade [Genéthlion] de Cristo, que deveis celebrar no vigésimo-quinto dia do nono mês”. É importante notar que este antigo documento reflecte a aceitação, na Síria, de Abril como o primeiro mês pascal, pelo que o nono mês equivale exactamente a Dezembro. Esta festa da Natividade é seguida, no sexto dia do mês seguinte, da Festa chamada Epifania, da qual o texto diz “o Senhor fez a ti uma manifestação [epipháneia] da Sua própria divindade”. Vemos então, já claramente distintas, lado a lado, a Festa do Natal e a da Teofania.

Em outra passagem, as mesmas Constituições também dizem: “Celebrai o dia da Natividade de Cristo, no qual graça invisível é dada ao homem pela natividade do Verbo de Deus da Virgem Maria, para a salvação do mundo”.

Existe alguma discussão quanto à data exacta deste documento, que compila fontes antigas que tratam da disciplina e hierarquia da Igreja, bem como diversos aspectos litúrgicos, mas as melhores autoridades datam-na, na sua forma final, do ano 400 AD ou talvez uns vinte anos antes. É razoável supor que estas indicações a respeito do Natal têm origem bastante antiga, mas dado as Constituições se tratarem sobretudo dum manual prático, remanejado e adaptado a diferentes condições, é difícil assentar-se exclusivamente no seu testemunho a não ser como reforço ou confirmação doutras fontes mais antigas.

Todavia, estas não nos faltam: na passagem do século II para o III, nos seus Stromata ou Miscelânias, Livro Primeiro, capítulo 21, Clemente de Alexandria (+215 AD) indica o dia da Natividade em fins de Dezembro ou princípios de Janeiro. Dada a complexa cronologia que Clemente traça, desde a criação do mundo até aos últimos imperadores romanos (cujo reinado servia usualmente como balizas de referência cronológica), e o uso do nome de meses egípcios, a data precisa está sujeita a diferentes interpretações. Roland Bainton calculou, comparando várias datas na cronologia de Clemente, a data de 6 de Janeiro, que Clemente relacionava com a data do Baptismo do Senhor, dado que Lucas 3:23 afirma Jesus começar a ter cerca de trinta anos, aquando do Seu Baptismo. Outros cálculos indicariam 31 de Dezembro.

Mais importante que a data precisa é o período do Inverno, sem qualquer relação aos cultos solares do solstício – de resto, num período em que os cristãos rejeitavam todo o culto pagão, pelo preço do próprio sangue.

São Gregório o Taumaturgo

São Gregório o Taumaturgo

Também o douto cronologista romano Sextus Julius Africanus, primeiro historiador cristão e amigo do sábio Orígenes, no ano de 221 ou 222 AD, na sua Chronographia ou De temporibus, datou a concepção de Jesus a 25 de Março (a mesma data em que hoje celebramos a Festa da Anunciação), dia que atribuiu também à criação do mundo. Embora a sua obra só tenha chegado aos nossos dias em forma muito fragmentária, e não tenha sobrevivido qualquer fragmento mencionando a data da Natividade, se contarmos nove meses, a partir da concepção, não é difícil chegar à data de 25 de Dezembro.

Na primeira metade do século III, Santo Hipólito de Roma (+235 ou 269), discípulo de Santo Ireneu de Lião, menciona a Festa da Natividade de Cristo, no seu comentário a Daniel 4:23. Ele diz: “A primeira vinda de Nosso Senhor, na carne, na qual Ele nasceu em Belém, teve lugar oito dias antes das Calendas de Janeiro [isto é, a 25 de Dezembro], uma Quarta-Feira, no quadragésimo-segundo ano do reinado de Augusto, 5500 anos desde Adão.” Santo Hipólito também indica a leitura do Evangelho, dos capítulos iniciais de Mateus.

São Gregório o Taumaturgo (+270), Arcebispo de Neocesareia, na Ásia Menor, na sua Segunda Homilia da Anunciação à Santíssima Virgem Maria, pela segunda metade do século III, situa a Anunciação – e, portanto, a Encarnação/Concepção de Jesus – no mês de Nisan, da páscoa judaica, identificando-o como o primeiro mês do ano, o primeiro da gravidez da Virgem, e o sexto mês da gestação de São João Baptista. Esta data necessariamente colocaria a Natividade em Dezembro ou Janeiro.

Diante destes testemunhos, empalidece o ano de 336 AD, ao qual muitos atribuem “a primeira celebração oficial do Natal em Roma, sob o Imperador Constantino”. Na verdade, não se trata do registo histórico duma celebração faustosa e permeada duma glória e pompa mundana, como imaginam adversários mais puritanos do Natal e de toda a beleza litúrgica. Trata-se duma breve menção escrita na Cronografia de 354, uma compilação de cronologias e calendários, que lista entre outras coisas as datas do nascimento para os Céus de vários bispos e mártires. A primeira data listada é a de 25 de Dezembro, com a breve nota “Natus Christus in Bethleem Iudaeae”, isto é, Cristo nascido em Belém de Judá.

Visto que a nota terá sido introduzida no ano de 336 AD, durante o breve pontificado do Papa Marcos, especulou-se que se tratou da primeira celebração oficial do Natal, sob o influxo do Imperador Constantino o do culto imperial ao Sol Invicto. Para quem conhece algo do peso da tradição oral na Igreja Primitiva, uma breve nota num calendário nada indica senão uma menção ou testemunho escrito, que sequer é o primeiro.

Sol Invicto mais tardio que a festa cristã

Ora, costuma-se dizer que os cristãos tomaram a Festa e a própria data do Natal da celebração romana do Nascimento do Sol Invicto (Dies Natalis Solis Invicti), a 25 de Dezembro. Existe alguma discussão a respeito de quando precisamente foi estabelecida esta data para a festa solar, mas o que os documentos antigos mostram é que, acima de qualquer dúvida, ocorreu muito depois da celebração do Natal a 25 de Dezembro, ainda que a data só tenha adquirido universalidade na Igreja Cristã a partir do século IV, com o fim das perseguições.

Aureliano, Imperador Romano (+275), reformou e promoveu grandemente o antigo culto romano do Sol Invictus (Sol Invicto, Vitorioso), após as suas vitórias militares no Oriente que o elevaram ao império. O culto era antigo, em Roma, o que é testemunhado, inter alia, por uma inscrição do século II que lê: “Inventori Lucis Soli Invicto Augusto”ao autor da luz, Augusto Sol Invicto. Todavia, Aureliano deu a este culto um lugar muito mais central e prestigioso. Os sacerdotes do sol, dantes pertencentes em geral aos estratos sociais mais baixos, passaram ao estatuto de pontífices, sendo equiparados a senadores. Aureliano edificou um novo templo ao Sol que, diz-se, terá sido dedicado a 25 de Dezembro de 274 AD, elevando o número de templos dedicados ao deus Sol, em Roma, a quatro. Na mesma data, também se crê, terá promovido Jogos em honra do deus Sol, a serem jogados de quatro em quatro anos, desde o ano de 274, à semelhança dos Jogos Olímpicos dos gregos.

Na verdade, esta data, longamente aceite, tem sido mais recentemente contestada devido à falta de evidência documental, não havendo registo da celebração do Sol Invicto a 25 de Dezembro, antes de 354/362 AD. Os conhecidos festivais do Sol ocorriam, antes de Aureliano, a 8 e/ou 9 de Agosto, 28 de Agosto e a 11 de Dezembro. Não há qualquer fonte que indique a data precisa da dedicação do templo e da celebração dos Jogos ao Sol, mas sabe-se que os Jogos foram de facto celebrados de quatro em quatro anos desde 274 AD. A única referência explícita à celebração do Sol no final de Dezembro é feita pelo Imperador Juliano o Apóstata (+363), no seu hino ao Rei Hélios (o Sol) escrito em princípios de 363 AD. Juliano diferencia explicitamente a celebração anual, de um dia, em fins de Dezembro de 362 AD, dos Jogos Solares quadrienais, que, é claro, também foram celebrados em 362, mas noutra altura do ano. A comparação deste hino de Juliano com fontes como o Calendário de Filocalus, de 354 AD, indicam que os Jogos Solares instituídos por Aureliano ocorreriam de 19 a 22 de Outubro, e presumivelmente coincidiram com a dedicação do novo templo ao deus Sol no ano de 274.

Estes dados tornam ainda mais remota e, francamente, absurda, a hipótese de que os cristãos copiaram o culto e a data da festa do Sol Invicto, cuja primeira celebração documentada em fins de Dezembro data da segunda metade do século IV e, ainda mais, durante o reinado de um Imperador como Juliano o Apóstata, ferozmente oposto à Fé cristã e determinado a aniquilá-la, restaurando o antigo esplendor do culto pagão. Se foi de facto Juliano a instituir a data do Dies Natalis Solis Invicti em fins de Dezembro de 362, não é inverosímil supor que o fez imitando a data do Natal, com o fim de a absorver ao culto do deus Sol, e não o contrário – e que, no contexto da feroz propaganda anticristã, se tenha passado a tomar como dado adquirido que já Aureliano celebrava o Sol Invicto a 25 de Dezembro.

O Sermão da Natividade de São João Crisóstomo
São João Crisóstomo, Ícone Romeno

Ícone (romeno) de São João Crisóstomo. 

O Sermão da Natividade de São João Crisóstomo, pregado a 25 de Dezembro de 386 AD na Igreja de Antioquia (onde era então presbítero), reveste-se de particular relevo, tanto pelo verbo inspirado do autor como pelos dados históricos que partilha a respeito da recepção da data no Patriarcado de Antioquia (que inicialmente celebrava Natal e Epifania na Festa das Luzes, a 6 de Janeiro).

O próprio título da pregação lê assim:

“Para a Natividade de Nosso Senhor Jesus Cristo, cujo dia era[-nos] desconhecido até há poucos anos, quando alguns vindo do Ocidente [isto é, de Roma] no-lo deram a conhecer e o anunciaram publicamente”

Assim se desenrola o argumento:

Aquilo por que Patriarcas outrora sofreram as dores de parto, que os profetas predisseram, e homens justos desejaram contemplar – isto veio a passar e teve o seu cumprimento neste dia. Longamente desejei ver este dia, e não meramente o ver, mas vê-lo com tamanha assembleia. Este meu desejo, portanto, está realizado e cumprido.

Embora não seja ainda passado o décimo ano desde que este mesmo dia se tornou conhecido entre nós com segurança, pelo vosso zelo, foi assim celebrado, como se nos tivera sido transmitido desde o princípio. Portanto não erraria que chamasse este dia tanto novo como velho; novo, porque o conhecimento a respeito dele acaba de chegar a nós; velho e primitivo, porque rapidamente se fez companheiro dos mais antigos [isto é, Teofania, Páscoa e Pentecostes] e tinha, por assim dizer, atingido a mesma idade que eles. Este dia, conhecido desde o princípio pelos que habitam a Ocidente, e apenas recentemente trazido a nós, tão depressa floresceu e deu tal fruto como vedes; nossos átrios repletos em toda a parte, e cada igreja apinhada duma multidão. Portanto podeis esperar uma digna recompensa deste vosso zelo, de Cristo que hoje nasceu. Vosso zelo amoroso deste dia é a maior prova de amor Àquele que nasceu neste dia.

A respeito de que quereis ouvir neste dia? Do que mais senão a própria data? Pois sei bem que muitos ainda disputam uns com os outros acerca disto, alguns questionando [a data], outros defendendo. Por um lado, alguns argumentam contra ela, como sendo nova e recente; outros a defendem como antiga e primitiva, porque os profetas predisseram a Sua Natividade, e desde o princípio ela foi claramente conhecida e grandemente celebrada por aqueles que habitam deste a Trácia a Cádiz.[1]

São João Crisóstomo determina a seguir três provas – duas extra-bíblicas, como diríamos hoje, e uma bíblica – pelas quais se poderia saber seguramente que Cristo nasceu a 25 de Dezembro:

  1. “Esta Festa foi proclamada em toda a parte, tão rapidamente, e cresceu a tamanha dimensão. O que Gamaliel disse a respeito da pregação dos Apóstolos, eu poderia afirmar com confiança a respeito deste dia: que, porque Deus o Verbo é de Deus [Pai], portanto este [dia] não-somente não será derribado por terra, mas a cada ano será mais amplamente guardado e mais claramente conhecido.”

Gamaliel disse, a respeito dos Apóstolos, então presos, e sob julgamento a cargo do sinédrio: “Dai de mão a estes homens, e deixai-os, porque, se este conselho ou esta obra é de homens, se desfará; mas, se é de Deus, não podereis desfazê-la; para que não aconteça serdes também achados combatendo contra Deus.” (Atos dos Apóstolos 5:38-39). Para Crisóstomo, o florescimento da Festa é prova evidente que ela vem de Deus. 

  1. “É manifesto que Cristo nasceu no tempo do primeiro alistamento sob Quirino; e a qualquer que deseje saber com exactidão é legítimo pesquisar os antigos registos publicamente depositados em Roma, e lá aprender o tempo daquele alistamento. Mas o que nos diz respeito isto, diz-se, a nós que lá não estamos e nunca lá estivemos? Ouvi e não sejais descrentes, pois fomos informados a respeito deste dia por aqueles que examinaram estas coisas com exactidão e são habitantes daquela cidade. Pois aqueles que lá viviam, tendo-o celebrado desde o princípio, e por uma antiga tradição, agora nos transmitiram o conhecimento a este respeito.”

É importante considerar que pelo ano de 386 AD, as perseguições à Igreja tinham cessado havia apenas umas sete décadas, e que neste período a celebração do Natal, a partir de Roma, se espalhou tão rapidamente como fogo, por toda a parte onde não havia chegado. São Gregório de Nazianzo (+389) – depreende-se a partir de uma sua homilia do Natal – terá sido provavelmente o primeiro a celebrar a Festa em Constantinopla, pelo ano de 380 AD, o que só se tornou possível com a ascensão do Imperador Teodósio, que não apoiava o Arianismo, e que elegeu São Gregório para restaurar a Fé Ortodoxa na cidade imperial.

São Gregório de Nazianzo, Ícone Russo

Ícone (russo) de São Gregório de Nazianzo. 

Neste mesmo período, São Cirilo de Jerusalém (+386), adversário figadal do Arianismo, escreve ao Papa Júlio I (+352), pedindo-lhe para confirmar a data do nascimento de Cristo “a partir dos documentos do censo trazidos por Tito a Roma”, após a destruição de Jerusalém em 70 AD. Júlio então determinou a data a 25 de Dezembro, e São João Crisóstomo ter-se-á baseado, presume-se, no conhecimento que recebeu desta mesma inquirição.

Muitas outras Festas irradiaram para toda a Igreja a partir de Jerusalém, lugar onde se passaram os eventos sagrados, cujas celebrações inicialmente se passavam nos locais precisos onde sucederam: assim, os rituais da Teofania eram inicialmente celebrados apenas no Rio Jordão, o lava-pés e Liturgia da Quinta-Feira Santa no cenáculo, em Jerusalém, as cerimónias da Sexta-Feira Santa e da Páscoa da Ressurreição, na Basílica do Santo Sepulcro, edificada sobre o Gólgota e sobre o santo sepulcro do Senhor, e assim por diante. No caso do Natal, Roma por assim dizer tomou a dianteira por ter acesso aos dados do censo de Quirino.

Júlio, Cirilo e Crisóstomo não estavam sozinhos na sua confiança nos documentos do censo. [São] Justino Mártir (+165 AD), numa detalhada declaração da Fé cristã dirigida ao Imperador Marco Aurélio, afirmou que Jesus nasceu em Belém “como podeis confirmar também dos registos dos impostos” (Apologia, I, 34). De igual modo, Tertuliano (+250 AD) escreveu a respeito do «censo de Augusto» – aquela testemunha fidelíssima da Natividade do Senhor, guardada nos arquivos de Roma” (Contra Marcião, Livro 4, 7).

A terceira prova é doutra natureza, e assenta na cronologia bíblica dos eventos que culminam com a Natividade do Senhor. São João Crisóstomo recapitula-os desde a aparição do Anjo a São Zacarias, anunciando o nascimento de São João Baptista, o Precursor, em Lucas 1:5 e seguintes:

  1. “Zacarias era o Sumo-Sacerdote, e viu a visão [do anjo], e recebeu a promessa do nascimento de João [Baptista], quando entrava no Santo dos Santos aquando do Dia da Expiação [conhecido em língua hebraica como o Yom-Kippur]. Isto ocorreu em finais de Setembro. Então partiu para sua casa, e teve lugar a concepção de sua mulher [Santa Isabel]. Quando ela estava no seu sexto mês (em Março), teve lugar a concepção de Maria [celebrada pela Igreja a 25 de Março]. Contando nove meses desde então, chegamos ao presente mês [de Dezembro] em que Cristo nasceu.”
Zacarias

Ícone de São Zacarias com as vestes sacerdotais.

Desta breve narrativa, vemos que biblicamente a data da Natividade em Dezembro está “ancorada” à data da aparição do anjo a São Zacarias, que não é explicitamente datada na narrativa de Lucas. São João Crisóstomo, todavia, aduz a partir de vários elementos da narrativa (como a proximidade do povo, ainda que Zacarias estivesse invisível) que se tratava exactamente do Dia da Expiação, em que o Sumo-Sacerdote entra, uma vez por ano, sozinho, no Santo dos Santos.

Outros autores antigos também consideravam Zacarias o sumo-sacerdote, e a aparição como tendo ocorrido no Dia da Expiação: o Proto-Evangelho de Tiago, o Comentário ao Diatessarão de Santo Efrém o Sírio (+373), ou a Exposição sobre o Evangelho de Lucas, de Santo Ambrósio de Milão (+397).

Seria extremamente longo discutirmos aqui a verossimilhança desta teoria a partir de dados arqueológicos e históricos, o que bem mereceria um artigo à parte. A dificuldade de Zacarias não ser mencionado como Sumo-Sacerdote – nem em Lucas nem em fontes históricas não-eclesiais – resolve-se considerando que, no interregno entre a eleição de sumo-sacerdotes, ou na sua impossibilidade por qualquer outra razão, poderia ocorrer a eleição de um sumo-sacerdote temporário, que desempenharia as suas funções sagradas, incluindo a mais temível e essencial, que era a de entrar, uma vez por ano, no Santo dos Santos, diante da Arca da Aliança. Tal possibilidade é registada, inclusive, em algumas versões do Talmude.

Além disso, parece bom considerar que, pelo século IV, estes luminares da Igreja – que sofreram toda a sorte de perseguições pela fé, incluindo o exílio – teriam não só acesso a informação fidedigna, seja oralmente ou por via documental (antes da destruição trazida pelas invasões bárbaras), seja pela sua grandeza moral e, ao contrário do que se afirma com anacronismo leviano, pelo seu desprendimento do poder temporal e profundo amor a Deus e à mesma Verdade.

 

A Mitologização do Verbo Encarnado

A crítica à data tradicional do Natal é historicamente recente, no quadro de dois mil anos de Cristandade, e teve início visível com os Enciclopedistas, no período Iluminista. Seu propósito seria o de estabelecer e propagar a noção de uma unidade transcendente das religiões, pelo que importava reduzir todo o seu carácter específico – e muito especialmente o da fé cristã, dominante na Europa – à irrelevância, a aspectos acidentais e exteriores duma fé exotérica, isto é, meramente exterior e passível de ser ministrada ao grande público, ao contrário do ensinamento esotérico, supostamente interior e destinado a um círculo fechado à maneira das ordens ocultas.

Sem afirmarem a inexistência histórica de Jesus de Nazaré, reduziam contudo a Encarnação do Verbo a mero mito, a uma lenda destinada às massas, com um fito pedagógico que só aos iniciados seria possível vislumbrar, e que seria essencialmente idêntico aos cultos solares do Sol Invictus, ou Mithra, ou Heliogábalo, ou qualquer outro, revestido com os símbolos e narrativas próprios a cada povo e cultura.

A redução da Boa-Nova da Encarnação do Verbo a mero mito propagou-se de tal forma, por toda a parte, que já encontrou assento em cátedras de teologia, em seminários, em paróquias, em cursos bíblicos ou até em catequeses, nominalmente cristãs, e não apenas em cursos de Ciências da Religião, onde a análise comparada de religiões, privada da Revelação divina e guiada por critérios sociológicos ou antropológicos, poderia levar. Tal mitologização, num contexto nominalmente cristão, irá encontrar como corolário alguma forma de heresia, seja de aspecto ariano, ou nestoriano, ou monofisita – basicamente, negando seja a natureza divina seja a natureza humana do Verbo Encarnado, e reduzindo-O seja a mero homem (bondoso, santo, iluminado e profético), seja a um Deus que assumiu a humanidade só na aparência.

O bispo Damasceno, autor do texto.

É evidente que entre os inimigos de Cristo, tal mitologização vai mais longe, seja negando violentamente a divindade, os milagres e a Ressurreição de Cristo (considerando o Evangelho uma contrafacção humana), seja negando a Sua própria existência histórica. Em todo o caso, por qualquer razão importa-lhes refutar a data da sua Natividade.

Mas não deve ser por acaso: afinal, que há de mais alheio ao mito, criação de um certo imaginário colectivo, que o nascimento, o parto de uma nova Vida entre nós?

 

 

Nota
[1] Trácia, na Europa do Leste, onde hoje ficam Bulgária e Roménia, e Cádiz, na península Ibérica, no extremo ocidental da Europa, de fundação antiquíssima, pelos fenícios. Provavelmente Cádiz é citada por ser cidade portuária importante nas relações comerciais com o Oriente. O importante a reter é que São João Crisóstomo mencionava toda a Europa, de Oriente a Ocidente.

 

Damasceno Ribeiro é bispo de Coimbra e Aveiro, da Igreja Ortodoxa de Portugal

 

Tropário da Natividade de Nosso Senhor Jesus Cristo, melodia sérvia, tom 4, gravado no Mosteiro do Nascimento da Mãe de Deus, Natal de 2019. Tradução para o português, adaptação musical e direcção do bispo Damasceno.

(o Tropário é um hino litúrgico, em uso nos ritos e ciclos litúrgicos da Igreja Ortodoxa, que resume em poucas linhas o significado da Festa do dia)

 

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