Praticamente todas as religiões monoteístas, e especialmente as abraâmicas, quando falam catafaticamente acerca de Deus, referem-se a Ele várias vezes como sendo Omnipotente, Todo-Poderoso. Acontece que nas nossas sociedades pós-modernas altamente secularizadas e perante a constatação de ocorrências de catástrofes naturais, do sofrimento e da morte, é por vezes difícil conciliar essa cosmovisão de um Deus bom e que tudo pode.
Sabe-se que na predominante cultura patriarcal, como era a romana, a metáfora de Deus Pai como Todo-Poderoso era deveras atrativa. Observava-se que os cristãos perseguidos por causa da sua fé e na sua grande maioria constituída por clientes, proletários e escravos, associavam a figura toda poderosa do pater familias a Deus. Dessa figura patriarcal esperavam para si e respetivas famílias, abrigo e proteção de todos os perigos e danos.
Existia também uma certa correlação entre o desenrolar da liturgia na igreja ao longo dos tempos e o uso da adjetivação de Deus como Todo-Poderoso. Começando pela institucionalização da igreja, passando pela assimilação das estruturas e símbolos do império nas próprias catedrais e igrejas, onde até as vestes dos sacerdotes espelham o esplendor e poder dos antigos sumo-sacerdotes pagãos, era quase impossível a referência a Deus senão como o Todo-Poderoso.
Mas ao longo de séculos a imagem de Deus todo-poderoso tem também levado muitos a interrogarem-se acerca da condição humana, do sofrimento e do mundo/universo imperfeito em que vivemos. Se Deus, sendo ele amoroso, tem todo o poder e sabe todas as coisas, como explicar o mal?
O famoso paradoxo do filósofo grego Epicuro tem induzido muitos a pensarem num Deus totalmente despreocupado e alienado dos problemas humanos e do mundo que os rodeia, já que o mesmo postula a impossibilidade da existência um Deus totalmente poderoso, omnisciente, omni-benevolente e que ao mesmo tempo tivesse permitido a existência do mal e sofrimento consequente.
Não existem respostas fáceis para estas questões profundas e nem sequer nas sagradas escrituras encontramos respostas satisfatórias para o problema da nossa finitude e sofrimento. No livro poético de Job, que tenta tratar o eterno problema da teodiceia – ramo da teologia que trata da coexistência de um Deus todo-poderoso de bondade infinita com o mal – o próprio Javé se esquiva a dar uma resposta satisfatória para o sofrimento de Job.
Na carta de Paulo aos Filipense e entendida através de uma perspetiva trinitária, a famosa passagem do segundo capítulo dá-nos uma leitura extraordinária e nada convencional acerca de um Deus Todo-poderoso que, ao encarnar por amor da humanidade, opta pelo Seu esvaziamento. Ao contrário das mitologias greco-romanas, onde as poderosas e imortais divindades podiam descer à terra e até se relacionarem com os mortais, este Deus afinal desce até nós abdicando de todos os seus privilégios e poder, tomando a forma de um escravo (μορφὴν δούλου), manso e humilde de coração (Mateus 11:25-30).

“O poder do Deus-Poderoso, é afinal escândalo para muitos, revelado numa cruz,..” (Salvador Dalí, Cristo de São João da Cruz)
Por vezes as nossas fragilidades e inseguranças preferem o refúgio em imagens todo-poderosas de Deus, de um Deus que intervém ativamente na história. E se pensássemos num Deus que atua essencialmente através das nossas fraquezas? E se a Sua fraqueza foi o único meio que Ele encontrou para estar connosco ao nosso lado e assistir-nos nas nossas dores e angústias? Dietrich Bonhoeffer, um dos grandes teólogos e mártir às mãos do poder nazi, viu em Jesus esse Deus fraco e débil que não intervém no mundo como uma máquina (deus ex machina) para nos salvar e libertar, mas que está ao nosso lado, que sofre connosco, nos sustem nas nossas dores e fraquezas.
Lembro-me de um relato de um sobrevivente de um campo de concentração nazi, Elie Wiesel, no seu livro A Noite, que conta a história do enforcamento de uma frágil criança pendurada e a debater-se em agonia durante mais de meia hora. Neste horrendo quadro presenciado por vários adultos, alguém perguntou “Onde está Deus?”. Como que o pequenino continuasse ainda a resistir a viver, o mesmo homem continuava a insistir “Onde está Deus, então?”. O autor sentiu dentro de si uma voz que lhe respondia: “Onde é que Ele está? Ei-lo… está aqui pendurado nesta forca…”. O poder do Deus-Poderoso, é afinal escândalo para muitos, revelado numa cruz, em que até o próprio Jesus se encontra totalmente abandonado no Seu sofrimento.
A antítese do poder encontra-se afinal no serviço, essa inversão que muitos não entendem: o Todo-poderoso Deus, ao jeito sacramental, faz-se deliberadamente escravo ao tomar uma toalha e uma bacia, e que lava os pés poeirentos e sujos das Suas criaturas (João 13:1-15). Relembremos as palavras do Papa Francisco: “O que distingue o juízo de Deus do nosso juízo não é a onipotência, mas a misericórdia. Em Jesus aprendemos que Deus é todo-poderoso no amor e na misericórdia.”
Vítor Rafael é investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona.