Definir com rigor as etapas e os objetivos da participação, superar a crise de representatividade na Igreja, reforçar o sentimento de pertença e mudar as mentalidades através da “escuta do clamor da Terra e do clamor dos pobres” são as sugestões de um grupo informal constituído no Patriarcado, em resposta à maior auscultação alguma vez feita à escala planetária, lançada pelo Papa Francisco, para preparar a assembleia do Sínodo dos Bispos de 2023. Esse coro imenso de vozes não pode ser silenciado, reduzido, esquecido, maltratado. O Espírito sopra onde quer e os contributos dos grupos que se formaram para ouvir o que o Espírito lhes quis dizer são o fruto maduro da sinodalidade. O 7MARGENS publica alguns desses contributos, estando aberto a considerar a publicação de outros que queiram enviar-nos.

“Este é o tempo de escutar e discernir os sinais dos tempos. Peçamos ao Espírito Santo, antes de mais nada o dom da escuta.” Foto © Ridvan Celik.
Intencionalidade
Sem esquecer a “missão”, a nossa reflexão [bem como os contributos solicitados] centrou-se na “comunhão” e na “participação”, inspirada pelos pontos VIII. Autoridade e Participação e IX. Discernir e Decidir do Documento Preparatório do Sínodo dos Bispos de 2021-2023 e pelo desejo de contribuir para “examinar como são vividos na Igreja a responsabilidade e o poder e as estruturas mediante as quais são geridos” e elucidar as “formas participativas de exercer a responsabilidade no anúncio do Evangelho”.
O nosso processo reflexivo fez-se de “fora” para “dentro”, da polis para a ecclesia. Na certeza de que os católicos são cidadãos a quem será estranho impor na Igreja regras de participação contraditórias àquelas que regem a sua vida cívica em democracia. Aceitando os matizes e as diferenças próprios de uma e outra vivência, é também importante que a participação dos batizados nas decisões relativas às prioridades da vida comunitária recolha e valorize a experiência acumulada por estes na sua intervenção na polis. Aquilo que diz respeito à vida de todos, por todos tem de ser pensado, discernido e concretizado. É necessário consolidar espaços e dinâmicas onde esta corresponsabilidade possa ser exercida não simplesmente a modo de uma metodologia apropriada à vida das comunidades cristãs, que o é, mas sobretudo como maneira de ser Igreja e de ser também Igreja no mundo.
A sinodalidade não é na Igreja uma simples metodologia, mas um modo de ser. Neste sentido a Igreja é desafiada não só a praticar a sinodalidade, mas principalmente a ser sinodalmente. O caminho da sinodalidade é o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio (cf. Discurso do Papa Francisco na Comemoração do cinquentenário da Instituição do sínodo dos Bispos, 17 out 2019).
Embora seja este o eixo central da nossa reflexão, ela nunca deixou de ter presente as duas referências societais implicadas no anúncio de Jesus Cristo hoje, tão bem ilustradas nos desafios do Papa Francisco sobre a Casa Comum [Laudato si’] e a paz, a amizade social, as margens e os descartados [Fratelli tutti]. De facto, a sinodalidade (e esta nossa reflexão) só ganha(m) sentido como modo de ser próprio para “nos colocarmos à escuta do clamor dos pobres e da terra”.
Os termos da participação
Sendo este Sínodo “um processo eclesial participativo e inclusivo” é desejável ter em conta que a participação é gradativa, tem quatro degraus e passa por: informar (sentido unívoco); escutar (sentido biunívoco); suscitar a colaboração/corresponsabilidade (implica a cocriação e o desenvolver do protagonismo de todos, pensado em termos de corresponsabilidade comum e não apenas em de termos participação, por delegação, na responsabilidade de alguns); aceitar a deliberação (implica todos os anteriores níveis e ainda a codecisão). Os quatro níveis podem coexistir num mesmo processo participativo, mas cada um vale por si. Importa, pois, refletir sobre qual será mais adequado para atingir os fins específicos em vista em cada processo participativo.
No entanto, todo o processo participativo deverá ter em conta que:
- comporta riscos. Por isso deve basear-se em regras de diálogo (instituídas ou informais) consensuais (sem elas o horizonte de confronto aumenta de modo significativo) e procedimentos claros. Contudo, a atenção dada às regras e procedimentos não deve ofuscar o horizonte substantivo da participação: O que queremos debater /decidir? Porque o queremos? Quem participa?
- processos mais participados nem sempre conduzem a melhores resultados. Certo é, porém, que quanto maior é a participação mais cresce a confiança na instituição e na decisão e mais qualificada será a participação em assuntos futuros;
- consenso e conflito não se apresentam sempre como opostos. A obsessão pelo consenso tende a nivelar por baixo, do mesmo modo que o diálogo não resolve todas as questões;
- a linguagem utilizada tem importância crucial: ela é a “porta” que, quando aberta e simples, permite a entrada de todos e que, quando fechada, hermética, codificada, funciona como “barreira à entrada” que impede essa mesma participação de todos;
- a estrutura hierárquica (caracterizada por permitir um nível baixo de participação), não se opõe à estrutura em rede (altos níveis de participação). Ambas podem /devem coexistir numa mesma instituição para gerir aspetos diferentes da sua vida e nela interagir de modo dinâmico;
- a diferenciação dos processos participativos (conforme as geografias e as culturas, os temas e as tradições particulares) é uma riqueza institucional muito importante e fonte de aprendizagem coletiva.
- a abertura de áreas de experimentação sobre modos de proceder/decidir em que a corresponsabilidade e a participação possam ser desenvolvidas implica a totalidade da instituição (incluindo aqueles que não participam nessas iniciativas) que deve acompanhar e acolher criticamente o balanço do caminho realizado.
A representatividade posta em causa…
A vida pós-moderna nas sociedades abastadas do Ocidente favorece a atomização social, a rarefação do sentimento de pertença e o reforço das hiperidentidades de grupo confrontacionais e excludentes, forjadas a partir das redes sociais (vida na sua bolha, onde muitas vezes se promove a desinformação e a radicalização, onde predominam algoritmos que procuram o sucesso e o lucro). A diversidade, associada à dificuldade de encontrar linguagens comuns, dificilmente pode ser integrada, sendo motivo de desagregação. Tal contexto tem-se revelado favorável à proliferação de cidadãos ressentidos contra o sistema demorrepublicano marcados pelo sentimento de não terem quem os representa na vida (e no espaço) pública(o). Tal processo, agravado pelo descaso ético de alguns responsáveis públicos [corrupção, eleitoralismo de curto prazo, procura de bodes expiatórios], instalou nas sociedades ocidentais a crise da representação, do representativismo, visível na perda de prestígio dos representantes eleitos.
… na comunidade católica

A tragédia dos abusos sexuais em contexto eclesial e o seu encobrimento por parte de alguma hierarquia, acompanhada por estilos de vida por vezes tão contrários ao Evangelho, vieram proporcionar o terreno propício a que também no interior da Igreja se exprima esta crise da representatividade, a que é necessário responder com um maior envolvimento de todos na escolha dos responsáveis e dirigentes, um novo tipo de formação dos seminaristas, uma renovada atenção à formação geral dos cristãos que não fique apenas centrada na formulação de doutrinas e normas morais, mas que se abra também às grandes questões que tocam a vida das pessoas e das sociedades e com novas formas e modos de participação que reforcem o sentimento de pertença à Igreja.
Tal reforço do sentimento de pertença poderá também ser alcançado pela aplicação do princípio da subsidiariedade – tantas vezes proposto pela Igreja para a boa gestão dos problemas do mundo – no interior da comunidade eclesial, fomentando a participação e a responsabilização local, a tomada de decisões pelas assembleias do nível geográfico mais próximo e o aprofundar da consciência da Igreja enquanto comunidade de comunidades.
Apesar dos estragos causados por décadas de agendas públicas exclusivamente centradas nos direitos do indivíduo sem qualquer relação com a comunidade nem com um qualquer sentido de futuro, de imaginário coletivo, seria benéfico desenvolver a reflexão sobre uma carta dos direitos, deveres e liberdades do batizado que sublinhe a responsabilidade de cada um pelo anúncio da fé em Jesus Cristo, pela renovação da comunidade eclesial, pelo cuidado da casa comum, pelo serviço da caridade e que garanta o seu espaço de liberdade próprio.
A crise do sentimento de pertença e da representatividade alastrou na Igreja também por causa do modo como esta afastou da sua mesa os casados recasados, as pessoas LGBT e manteve a mulher impedida de exercer o seu dever de servir a comunidade em todos os ministérios. Torna-se urgente aprofundar os passos dados para acolher toda essa multidão de excluídos pela Igreja, dando-lhes o protagonismo e a visibilidade que permita a todos esses grupos sentirem-se representados e parte da comunidade.
É necessário, nesse sentido, desenvolver uma eclesiologia que reabilite a Igreja ministerial em substituição da Igreja clerical, onde a palavra-chave seja diakonia em vez de poder; onde exercer o ministério faça parte e seja expressão do seguimento de Jesus (Ef 4,11); onde qualquer batizado, qualquer batizada, possa ser chamado(a) à ordenação ministerial para ensinar, santificar e governar na e pela Igreja; onde cada comunidade possa celebrar a Eucaristia em vez de se ver privada dessa possibilidade porque a tradição dos homens assim o determinou (restringindo o poder de presidir à celebração apenas aos homens solteiros).
De igual modo, a enorme atenção e importância dada pela Igreja à ação social não tem, contudo, descolado de um tom ainda muito assistencialista, nem permitido o desenvolvimento do protagonismo dos pobres e excluídos na vida das comunidades. Torna-se urgente promover a sua visibilidade e o seu protagonismo portas adentro, de tal modo que estes sintam a Igreja como “casa sua”, como comunidade em que, tal como todos os outros, podem ser “inteiros”, acolhidos no seu modo de ser, nas suas preocupações e gestos próprios, promovendo igualmente a partir daí a sua participação na polis. Importa, pois, criar processos concretos de “discriminação positiva” que permitam que todos os dons dos mais pobres sejam postos ao serviço das comunidades e que estas sejam efetivamente marcadas pela vida e pelo modo de ser dos que habitam as margens.
A questão da riqueza e das desigualdades inaceitáveis, que se têm acentuado quer dentro dos países quer a nível global, é motivo de escândalo. A Igreja, em geral, mas muitas vezes apenas timidamente, denuncia essas situações; assim, a par de denúncias claras como a da “economia que mata”, prevalecem muitas ambiguidades e quem olha de fora vê demasiadas vezes o bom relacionamento de responsáveis eclesiais com figuras de poder e detentores de riquezas exorbitantes. No mínimo, fica a impressão de que não há distanciamento e isenção para a denúncia clara do que está mal. Não faltam testemunhos verdadeiros de sinal contrário, é certo, mas há espaço para se exigir mais clareza e coerência com o Evangelho.
Quanto ao cuidado da casa comum: o sistema terrestre está à beira da catástrofe; há danos que já são irreversíveis; não é exagero afirmar, ainda que de modo simplista, que as próximas gerações pagarão bem mais caro que a nossa por piores condições de vida. Apesar de a encíclica Laudato si’, do Papa Francisco, ter servido de despertador para os menos atentos e ser referida de modo recorrente por muitos que versam o cuidado da casa comum, mesmo agnósticos, não consegue ainda hoje marcar a reflexão e ação de todas as instâncias eclesiais. A capilaridade da Igreja, como rede capaz de chegar a quase todo o lado, pode ser determinante na mudança de atitude que urge promover, em linha com a “escuta do clamor da Terra e do clamor dos pobres”.
A modo de conclusão
Mais do que viver numa época, na qual estamos a assistir a um enorme número de transformações e mudanças, vivemos no meio de um processo de mudança e transformação epocal. Como sempre nestes momentos, as tensões, as dúvidas e as incertezas podem paralisar-nos, impedindo-nos de ousar as mudanças necessárias. Podemos também sucumbir à tentação de nos agarrarmos àquilo que conhecemos e que noutros tempos parece ter funcionado, ou ainda ensaiarmos a chamada ‘fuga para a frente’, prescindindo da experiência e da sabedoria que o caminho já percorrido proporciona. O momento histórico que estamos a viver, no mundo, na sociedade, na Igreja, está a exigir dos cristãos e das suas comunidades a ousadia da profecia. Este é o tempo de escutar e discernir os sinais dos tempos. Peçamos ao Espírito Santo, antes de mais nada o dom da escuta: escuta de Deus, até ouvir com Ele o grito do povo; escuta do povo, até respirar nele a vontade de Deus que nos chama»” (cf. Episcopalis Communio, 6)
Juan Ambrósio. P. António Janela, Maria Julieta (rscm), Rita Veiga e Jorge Wemans
Maio de 2022
Este contributo é devedor da reflexão de João Ferrão, Miguel Poiares Maduro, Viriato Soromenho Marques e Teresa de Sousa a quem os subscritores agradecem pela disponibilidade em participar nos vários encontros havidos ao longo do mês de março.