
Lvova-Belova, 38 anos, já havia sido sancionada pela União Europeia em julho de 2022 e pelo Japão em janeiro deste ano. Foto © kremlin.ru.
Tem um ar angelical, cultiva uma imagem de benfeitora, é casada com um padre ortodoxo, tem cinco filhos biológicos e é mãe adotiva ou tutora legal de outras 18 crianças, e trabalha desde 2021 como comissária presidencial para os Direitos das Crianças na Federação Russa. No entanto, juntamente com Vladimir Putin, que a nomeou para o cargo quatro meses antes do início da guerra, Maria Lvova-Belova é acusada pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) de deportar crianças ucranianas para a Rússia: um crime de guerra que nenhum deles encara como tal, antes pelo contrário.
Lvova-Belova, 38 anos, já havia sido sancionada pela União Europeia em julho de 2022 e pelo Japão em janeiro deste ano. Agora, perante o mandado de prisão emitido pelo TPI no passado dia 17 de março, afirma: “é ótimo que a comunidade internacional tenha apreciado o trabalho de ajudar as crianças do nosso país, que não as deixemos na zona de guerra, que as tiremos, que criemos boas condições para eles, cerque-os de pessoas amorosas e atenciosas. Houve sanções de todos os países, até mesmo do Japão, contra mim, agora há um mandado de prisão, pergunto-me o que acontecerá a seguir – bem, continuamos a trabalhar”.
E por “trabalho” Maria Lvova-Belova entende visitar territórios ucranianos ocupados pela Rússia, levando as crianças que ali vivem até à Rússia, onde são adotadas por famílias russas. Depois, nas suas redes sociais, partilha fotos e vídeos a elogiar o processo de integração destas crianças nas novas famílias. Nunca fala em deportação, mas sim em “resgate”.
A BBC recorda que, em 2022, Lvova-Belova falou publicamente sobre os esforços para doutrinar crianças ucranianas levadas para a Rússia, referindo que, à chegada, algumas “falavam mal do presidente [russo], diziam coisas horríveis e cantavam o hino ucraniano”, mas depois “começaram a integrar-se”. “Sim, há algumas coisas chatas no início, mas depois elas transformam-se e amam a Rússia”, disse Lvova-Belova.
Antes de assumir o seu cargo atual, Maria Lvova-Belova liderava uma fundação em Penza, cidade onde nasceu e que fica a mais de 500 quilómetros a sudeste de Moscovo, com várias casas de assistência a portadores de deficiência e idosos. Na imprensa local, refere o jornal The European Times, há no entanto diversos relatos de denúncias contra ela por ser violenta com as crianças, por comunicar com elas apenas quando os média ou benfeitores estão presentes, e por ter aceite crianças orfãs em sua casa com a promessa de as adotar, que posteriormente devolveu aos orfanatos.
Ainda assim, a imagem que prevalece, refere o mesmo jornal, é a de uma jovem líder e benfeitora, sendo que o facto de o marido, Pavel Kogelman, que era programador de profissão, ter decidido tornar-se padre em 2019 também contribuiu para isso.
Diante das sanções, o próprio Vladimir Putin havia já afirmado em setembro de 2022: “Essa mulher frágil sozinha faz mais pelas crianças e pela paz do que esses vergonhosos americanos que rabiscam listas de sanções”.
Relatório estima que pelo menos seis mil crianças tenham sido deportadas

Segundo um estudo independente norte-americano, citado pela agência de notícias Reuters no passado mês de fevereiro, estima-se que cerca de seis mil crianças ucranianas tenham sido deportadas para a Rússia desde o início da invasão da Ucrânia.
De acordo com o relatório, esse número poderá ser superior e inclui, não apenas orfãos, mas também crianças sob os cuidados de instituições estatais ucranianas antes da invasão, com custódia incerta devido à guerra, ou mesmo com pais ou tutela familiar clara.
Os investigadores encontraram muitas destas crianças em “pelo menos 43 campos e outras instalações” cujo objetivo parecia ser “a reeducação política”. A maioria está localizada perto da fronteira ucraniana, uma dezena nas margens do Mar Negro e sete na Crimeia. Outros estão espalhados por várias cidades russas, nas regiões de Moscovo, Kazan ou Ekaterinburg, e há alguns no extremo leste do país, na Sibéria oriental. Nesses centros, as crianças recebem “cuidados” e “aulas diárias de língua e história russa”, explicou Maria Lvova-Belova nas suas redes.
Parte destas crianças foi adotada por famílias russas, ou transferida para um orfanato na Rússia, diz o relatório. “A criança mais nova identificada no programa russo tinha apenas quatro meses de idade, e alguns campos estavam a dar treino militar a crianças de até 14 anos”, acrescenta, não havendo evidências “de que essas crianças foram posteriormente enviadas para combater”.
O sistema de campos e a adoção por famílias russas de crianças ucranianas retiradas da sua terra natal “parece ser autorizado e coordenado aos níveis mais altos do governo da Rússia”, acrescenta ainda o relatório, a começar pelo Presidente Vladimir Putin e estendendo-se às autoridades locais.
O estudo conclui que estes atos poderão evidenciar que a Rússia cometeu genocídio, “já que a transferência de crianças para fins de mudança, alteração ou eliminação da identidade nacional pode constituir um ato componente” desse crime.
Para a Amnistia Internacional, a acusação por parte do TPI e a emissão dos mandados de detenção de Putin e Lvova-Belova “são um notável primeiro passo, mas até agora estão limitados ao crime de guerra de deportação ilegal de crianças. Isto não reflete a multiplicidade de crimes de guerra e crimes contra a humanidade pelos quais a liderança russa é potencialmente responsável”. Em comunicado emitido esta segunda-feira, a organização diz esperar que “o TPI e outros atores de justiça emitam novos mandados de captura à medida que as suas investigações sobre crimes à luz do direito internacional cometidos na Ucrânia começam a mostrar resultados”.