
Mapa de Nova Iorque, em 1755. Impresso por G. Duyckinck. Library of Congress, Geography and Map Division.
A Liberdade, que desde 1886 recebe de chama na mão quem se aproxima de Manhattan, guarda aos seus pés a memória de uma diáspora com origens no lado de cá do Atlântico. Emma Lazarus, a autora do poema gravado no pedestal da estátua, conseguia recuar a sua ancestralidade até um judeu de Lisboa que, em 1738, chegara àquela mesma cidade de Nova Iorque
Este é o mote para Judeus Portugueses na América (ed. Esfera dos Livros), livro da autoria da investigadora Carla Vieira, que na próxima segunda-feira será posto à venda em Portugal, e do qual o 7MARGENS publica aqui a introdução.
A história dos judeus portugueses na América do Norte começou em meados do século XVII, quando o navio St. Catrina aportou em Nova Amesterdão, levando a bordo 23 refugiados do Recife. A gesta continuou ao longo das décadas e séculos seguintes, repleta de personagens inolvidáveis, cuja história a autora resgata nesta obra: do rabino patriota ao príncipe mercador, do herói revolucionário ao daguerreotipista do
Faroeste, da matriarca que escrevia poemas ao médico que catalogava as maleitas da Virgínia, o livro pretende revisitar as vidas dessas pessoas que marcaram os primórdios dos Estados Unidos da América.
É um outro episódio da «Expansão» das línguas e culturas ibéricas pelo mundo, desta vez através de um grupo marginal, perseguido, alvo de ostracismo, mas, ainda assim, capaz de se reinventar, de reconstruir vidas e fortunas, e de manter aceso o sentimento de pertença a uma entidade grupal que atravessava impérios e culturas. E que, naquela diáspora, eram apelidados de «a nação portuguesa».
Carla Vieira é investigadora no CHAM – Centro de Humanidades da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e membro da Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste e publicou já vários trabalhos sobre os judeus portugueses.
Freedom to love the law that Moses brought,
To sing the songs of David, and to think
The thoughts Gabirol to Spinoza taught,
Freedom to dig the common earth, to drink
The universal air – for this they sought
Refuge o’er wave and continent, to link
Egypt with Texas in their mystic chain,
And truth’s perpetual lamp forbid to wane.
Emma Lazarus, «In Exile»,
Songs of a Semite: The dance to death, and other poems (1882)

Por onde começar? A questão é familiar a quem inicia o relato de uma história. Encontrar no devir do tempo, nessa malha de causas e consequências, o ponto de partida de uma trajectória de eventos necessariamente inscrita noutras trajectórias não passa de um artifício narrativo, ainda assim, um artifício necessário se queremos reduzir «o que aconteceu» a algo legível. Tentemos, então.
A diáspora sefardita para a América do Norte é uma história com vários começos, dependendo da perspectiva escolhida. Se optarmos por iniciar a narrativa no território de destino, o melhor é recuarmos até ao ano de 1654. No mês de Setembro, chegava ao porto de Nova Amesterdão a embarcação St. Catrina, trazendo a bordo 23 judeus refugiados do Recife. Durante mais de duas décadas, a cidade brasileira tinha acolhido a comunidade que fundara a primeira congregação judaica no Brasil, a Zur Israel («Rocha de Israel»). Desde 1630 que Pernambuco estava sob égide holandesa e, assim, livre da perseguição religiosa perpetuada nos territórios sujeitos à Coroa portuguesa. Porém, a situação mudou em 1654, quando a colónia regressou ao domínio português e os judeus residentes no Recife viram-se forçados a abandonar a cidade rumo ao exílio. A maior parte regressou à Holanda, outros refugiaram-se nas colónias holandesas nas Américas. Um pequeno grupo de 23 seguiu em direcção a norte, mas ventos contrários obrigaram-nos a recuar até à Jamaica. Dali continuaram a viagem até Cuba, onde fretaram o navio francês St. Catrina que os conduziu rumo a Nova Amesterdão.
A chegada dos 23 exilados na véspera do Rosh Hashanah de 1654 simboliza o início da presença judaica na América do Norte. Porém, não deixa de ser apenas isso, um marco simbólico. É provável que esse porto, tal como outros no território, fosse já esporadicamente frequentado por mercadores judeus. Mais certezas existem sobre a chegada, algumas semanas antes do St. Catrina, de uma outra embarcação vinda de Amesterdão, o Peereboom, com três judeus a bordo – Jacob Barsimson, Asser Levy e Solomon Pietersen.
O acolhimento dos recém-chegados não ocorreu sem percalços. O governador de Nova Amesterdão, Peter Stuyvesant, começou por manifestar resistência ao estabelecimento de judeus na colónia. Via-os como refugiados miseráveis, capazes de perturbar a harmonia económica e social daquele porto. Só a intervenção da comunidade judaica de Amesterdão junto dos directores da Companhia das Índias Ocidentais, fazendo uso do prestígio e do poder económico alcançado pelos seus membros, travou o intento de Stuyvesant de banir os recém-chegados da colónia.
A parcimónia de fontes capazes de reportar os primeiros anos da comunidade de Nova Amesterdão não tem permitido à historiografia traçar com rigor o percurso dos seus fundadores. Dez anos passados, uma nova mudança política alterou-lhe o destino. As forças britânicas conquistaram a colónia aos holandeses. Nova Amesterdão tornou-se Nova Iorque. Então, a maior parte dos membros originais da comunidade já havia partido do porto norte-americano. As resistências das autoridades locais aliadas à falta de boas perspectivas de negócio levaram muitos a seguir outro rumo. Dois dos três passageiros do Peereboom, porém, ainda continuavam na colónia: Solomon Pietersen, que, entretanto, se convertera ao Calvinismo, e Asser Levy, que viria a tornar-se numa personagem-chave na reconstrução da comunidade já sob domínio britânico.
O crescimento da comunidade

Nas décadas que se seguiram, o número de judeus a residir em Nova Iorque cresceu notavelmente. Imigrantes oriundos de Inglaterra e das Índias Ocidentais britânicas começaram a engrossar a comunidade. Em finais do século, os judeus residentes na cidade já superavam uma centena. Mais membros na comunidade significava maior capacidade financeira e, por conseguinte, a possibilidade de concretizar projectos há muito idealizados. O mais importante, porém, ainda demoraria a tornar-se realidade. Só em 1728 se reuniram condições suficientes para erguer um templo próprio. Dois anos depois, abriam-se as portas da sinagoga Shearith Israel («Restos de Israel»), em Mill Street, a primeira erigida em solo norte-americano.
Por essa altura, Nova Iorque já não era o único destino dos judeus que emigravam para a América do Norte. Poucos anos após a chegada dos 23 a Nova Amesterdão, um grupo de mercadores judeus estabeleceu-se em Newport, na colónia britânica de Rhode Island e Providence. Contudo, só em meados do século seguinte e na sequência do crescimento económico da cidade é que a comunidade atingiu maturidade suficiente para se organizar enquanto congregação. Assim surgiu a Kahal Kados Yeshuat Israel («Santa Congregação Salvação de Israel») em 1759. Quatro anos depois era inaugurada a sinagoga que, décadas mais tarde, ganharia o nome do seu primeiro hazzan1, Isaac Touro. Hoje enverga o estatuto da sinagoga mais antiga da América do Norte, dado que o edifício original da Shearith Israel de Nova Iorque não sobreviveu às novas exigências de uma comunidade em crescimento.
Nas colónias do Sul, a fundação de novas comunidades judaicas acompanhou os projectos de ocupação da fronteira com a Flórida espanhola e a necessidade de conter os avanços da potência inimiga. A 11 de Julho de 1733, aportava em Savannah, na recém-fundada colónia da Geórgia, um grupo de 42 judeus encaminhados da comunidade judaica de Londres. Dois anos depois, surgia a congregação Mickveh Israel («Esperança de Israel»), de existência efémera. A congregação não conseguiu sobreviver ao eclodir da Guerra da Orelha de Jenkins (1739-1748) e à debandada da grande maioria dos seus membros perante a ameaça de uma possível ocupação espanhola. Alguns acabaram por regressar após a vitória inglesa e por tentar a reestruturação da comunidade. Contudo, a Guerra da Independência desferiu um novo golpe sobre os judeus de Savannah. Só em 1786 é que a Mickveh Israel reuniu condições para conseguir erguer a sua sinagoga.
Muitos dos judeus que fugiram de Savannah em finais da década de 30, encontraram asilo em Charleston, na Carolina do Sul, contribuindo, assim, para ampliar a comunidade judaica ali estabelecida. A congregação Beth Elohim («Casa de Deus»), fundada em 1749, cresceu paulatinamente até à Revolução Americana. A Independência marcou o início do seu apogeu. Em 1794, era inaugurada a sinagoga e, na viragem do século, totalizando cerca de 600 membros, a comunidade de Charleston tornou-se na mais numerosa dos Estados Unidos da América.
Mas o emblema da «Sinagoga da Revolução Americana» (Synagogue of the American Revolution) não pertence à Beth Elohim de Charleston, mas sim à Mikveh Israel de Filadélfia. Antes da guerra, a comunidade judaica de Filadélfia resumia-se a pouco mais de duas dezenas de famílias. Berço da Declaração da Independência, a cidade serviu de refúgio aos judeus patriotas que escaparam de Nova Iorque, Newport, Charleston e Savannah após a ocupação pelas forças britânicas. A comunidade cresceu exponencialmente nos anos de guerra e, em 1782, quando já se avizinhava o fim do conflito, a sinagoga Mikveh Israel abriu portas.
Cinco comunidades no nascimento dos EUA

Cinco congregações judaicas formalmente constituídas assistiram ao nascimento dos Estados Unidos da América. Nas cinco, as cerimónias seguiam o ritual sefardita, não obstante a larga maioria dos membros ser de origem asquenazita. A aura de superioridade social e cultural dos descendentes da mítica Sefarad pesava mais do que a hegemonia demográfica dos «tudescos». Além do mais, as genealogias há muito se haviam mesclado. As elites sefarditas e asquenazitas norte-americanas partilhavam sobrenomes e descendência, embora Portugal e Espanha continuassem a ser as pátrias evocadas com maior orgulho, numa narrativa que combinava a excelência da linhagem com o drama da perseguição.
Este é um começo. Cruzando o Atlântico e recuando no tempo, podemos encontrar um outro para a nossa história. Difícil é escolher o início dos inícios. Seguimos a memória que legitima a dita superioridade sefardita até à era dourada do Judaísmo Ibérico, até aos séculos de Ibn Gabirol e Maimónides? Ou recuamos até Dezembro de 1496, quando D. Manuel assinou o édito de expulsão dos judeus e mouros de Portugal, quatro anos após ter acolhido os desterrados de Castela? Passamos pelo exílio, pelas conversões forçadas e iniciamos a nossa narrativa quando a perseguição religiosa se institucionalizou em 1536, com o estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício?
Se quiséssemos aplicar categorias actuais ao fenómeno da diáspora sefardita para classificar os seus actores, poderíamos dividi-los em migrantes económicos e refugiados, os primeiros a abandonar os reinos ibéricos em busca de novas oportunidades de riqueza, os segundos a escapar da perseguição religiosa perpetuada pela Inquisição. Contudo, esta hipótese de classificação colide com o facto de as duas categorias tenderem a confundir-se. A necessidade da procura de uma vida melhor além-mar ou para lá dos Pirenéus era frequentemente resultado de uma situação de fragilidade económica provocada pela prisão e pelo consequente confisco de bens. À tentativa de evitar o cárcere inquisitorial ou à esperança de viver livremente uma fé guardada em segredo era natural aliar-se a expectativa de progresso na carreira e nos negócios através da integração das abrangentes redes sociais e económicas da diáspora sefardita. A selecção dos destinos deste movimento migratório, dirigido para cidades portuárias emergentes e grandes centros urbanos, espelha essa perspectiva na conciliação entre prosperidade económica, segurança e liberdade de culto.
Durante o século XVI, a diáspora orientou-se sobretudo para o Mediterrâneo, em particular para as cidades italianas e territórios sob domínio do Império Otomano. Já no final da centúria e no alvor de Seiscentos, o movimento começou a tomar outros rumos, em direcção aos portos urbanos do Sudoeste de França – Bayonne e Bordéus, em especial – e aos Países Baixos. Durante o século XVIII, Amesterdão tornou-se no centro da diáspora judaico-ibérica e a congregação Talmud Torah («Aprendizagem da Lei») a referência para outras organizações comunais estabelecidas dentro e fora do Velho Continente. Em Hamburgo, uma outra comunidade com grande vitalidade económica, social e cultural emergiu em meados do século. Entretanto, em 1656, os judeus eram readmitidos em Inglaterra, mais de três séculos e meio após o édito de expulsão assinado pelo rei Eduardo I (1290). Embora sem decreto formal que confirmasse essa mudança, a pequena comunidade de cristãos-novos ibéricos estabelecida em Londres pôde finalmente arrendar uma casa em Creechurch Lane (Aldgate) para acolher os serviços religiosos e adquirir um terreno em Mile End para servir de cemitério.
Partir clandestinamente

O início do século XVIII trouxe uma reorientação do centro económico e financeiro da Europa: Amesterdão cedeu gradualmente o lugar a Londres. A capital britânica tornou-se num destino cada vez mais atraente para os exilados ibéricos. A consolidação das relações económicas e diplomáticas entre Portugal e Inglaterra a partir da Restauração, fomentada em inícios de Setecentos com a adesão do reino português à Grande Aliança durante a Guerra da Sucessão de Espanha e com a assinatura do Tratado de Methuen em 1703, alicerçou o movimento migratório. Desde o Tratado de Paz e Comércio de 1642, os mercadores ingleses usufruíam de liberdade de circulação e comércio em Portugal. O incremento das trocas entre as duas potências após Methuen tornou Inglaterra na principal origem das embarcações estrangeiras que frequentavam os portos portugueses. Pela mesma altura em que Portugal e Inglaterra firmavam a aliança comercial, a Inquisição desferia o último grande golpe sobre a elite cristã-nova de Lisboa. Na década de 20, uma nova onda de prisões atingiu o reino.
À insegurança da vida em Portugal, sob a constante ameaça do Santo Ofício, juntavam-se as crescentes oportunidades para partir clandestinamente a bordo de uma das velas militares inglesas que se furtavam à vigilância das autoridades portuárias ou no próximo paquebote que fazia a carreira regular entre Lisboa e Falmouth. E foram muitos os que assim embarcaram rumo a um destino mais seguro e próspero nas primeiras décadas de Setecentos.
As consequências deste movimento migratório fizeram-se sentir de forma notória em Londres. No período entre 1720 e 1733, o número de recém-chegados à comunidade judaica da capital inglesa superou largamente o total de membros residentes. Este crescimento repentino deu lugar ao surgimento de problemas de sustentabilidade financeira no interior da congregação. Por um lado, foi necessário desenvolver os mecanismos de solidariedade. Por outro, encontrou-se uma solução alternativa no incentivo à emigração rumo às colónias inglesas na América.
Foi via Londres que chegaram muitas das famílias fundadoras das comunidades sefarditas da América do Norte. Recuando um pouco nas suas histórias familiares, chegamos a uma narrativa comum de perseguição e fuga. Os quatro homens cujos passos seguiremos nos primeiros dois capítulos deste livro conheceram na pele o impacto da repressão inquisitorial. A prisão interrompeu-lhes as vidas e obrigou-os a tomar novos rumos. António Mendes Seixas e Francisco de Sequeira Machado procuraram, como tantos outros, um novo começo em Londres. O Dr. Diogo Nunes Ribeiro foi ainda mais longe e encontrou a última morada em Nova Iorque. Diogo José Ramos viu os filhos partir para escaparem à mesma sorte que o confinou aos cárceres do Santo Ofício durante anos. Os percursos destes quatro homens cruzaram-se na Lisboa de inícios de Setecentos. Os percursos dos seus descendentes cruzar-se-iam na América várias décadas depois. Nas emergentes cidades da costa leste, encontraram a fortuna e o reconhecimento.
Diogo José Ramos é o pai de Aaron Lopez, o «príncipe mercador de Newport». Naquela cidade portuária de Rhode Island, Aaron travou conhecimento e negócios com Moses Seixas, neto de António Mendes Seixas e parte de uma geração de ouro que também incluiu o «rabi» patriota Gershom Mendes Seixas e a escritora Grace Nathan Seixas. Além de mulher de letras, Grace também foi uma benfeitora e, em Filadélfia, trabalhou ao lado de Rebecca Machado Phillips na recolha de fundos para a nova sinagoga da cidade. Rebecca era neta de Diogo Nunes Ribeiro. Quando o Dr. Ribeiro partiu para a América, o seu lugar de médico da Hebra (sociedade de apoio aos doentes pobres) da congregação de Londres foi ocupado por Francisco de Sequeira Machado. Os seus filhos seguiram-lhe os passos. Um deles, John de Sequeira, após completar os estudos em Leiden, zarpou para a América, estabeleceu-se na Virgínia e nunca mais dali partiu. Tornou-se no médico residente do primeiro hospital na América do Norte exclusivamente dedicado a doenças psiquiátricas.
As origens dos restantes quatro protagonistas deste livro reproduzem o cruzamento familiar e a intensa mobilidade que traçam as feições da diáspora sefardita. Moses Lindo é filho de uma exilada da vaga de prisões em Lisboa no início de Setecentos e do descendente de uma das famílias fundadoras da comunidade judaica de Londres. A história das famílias de Isaac Touro, Francis Salvador e Solomon Nunes Carvalho recua até Portugal e Espanha e prossegue por Amesterdão e Londres. Nos campos do comércio, da religião, da guerra e da arte, os quatro conquistaram a posteridade.
O presente livro resgata do esquecimento as histórias destes indivíduos cujas vidas espelham a extraordinária epopeia dos judeus portugueses, uma outra «Expansão» da língua e cultura ibéricas pelo mundo, perpetuada por um grupo marginal, perseguido, alvo de ostracismo, mas, ainda assim, capaz de se reinventar, de reconstruir vidas e fortunas, e de manter aceso o sentimento de pertença a uma entidade grupal que atravessava impérios e culturas. Lá fora, apelidavam-nos de «a nação portuguesa». (…)
Nota
1 O hazzan ou cantor era o oficial da congregação a quem cabia a entoação das orações e a direcção dos serviços litúrgicos na sinagoga. Devido à ausência de rabinos nas congregações norte-americanas até ao século XIX, o hazzan acabou por assumir um papel de liderança espiritual nestas comunidades.