
“Esta realidade – como todas as demais – não se compadece com dogmas nem sentenças. Ao contrário, convive melhor com um questionamento íntimo, transformador a partir das entranhas” Foto: N’Djamena, Chade. © Luís Castanheira Pinto.
Tempestade de areia. Fico retido mais um dia em N’Djamena, a capital do Chade. Regresso ao hotel. Ao mesmo quarto onde dormi nas últimas semanas. Aproveito para escrever este texto. O hotel tem muros altos, fortificados. Arame farpado em todo o perímetro. À chegada abre-se um portão. O carro avança. O portão fecha-se atrás. Abre-se um outro, à frente. O carro avança de novo até à recepção. Cautelosamente. Esta dança de segurança é executada por homens fortemente armados. Um misto de subserviência e determinação inscritos no olhar. Carrancudos, sempre.
Lá dentro, uma horda de gente importante movimenta-se alheia a tudo o resto à sua volta. Parece-me. Não sei. Africanos, europeus, russos, turcos, americanos. E franceses. Muitos franceses. Os locais não gostam dos franceses. Negócios de armas. De petróleo. Programas de coordenação militar. Operações humanitárias. Projectos de assistência técnica. Reportagens e investigação. ONGs, Governos, e organizações internacionais. Tudo e todos se movimentam, lado-a-lado, neste espaço de Babel.
Da varanda do meu quarto vejo o muro do hotel. De um lado, a piscina azul, a relva verde, as palmeiras ondulantes. Desse lado, chega-me uma música lounge, cool. Do outro lado, N’Djamena. Pó. Seco. Tudo castanho. Canaviais encharcados de esgoto. Um caminho de terra. Uma estrada mais ao fundo. O som longínquo de viaturas que passam a conta-gotas.
Observo da janela duas crianças que, entretidas, defecam ali mesmo no caminho, a céu aberto. Todos os dias. Invariavelmente, por volta das 7h30 da manhã. Terão talvez uns 5-6 anos – nunca serei capaz de adivinhar a idade destas crianças. Agachados nas suas necessidades, conversam. Longamente. O primeiro levanta-se. Sobe as calças. Espera pelo outro sem sinais de impaciência. A conversa continua. O serviço termina. Os dois partem então. Caminham sem pressa nem vagar. O seu dia recomeça. Nunca saberei como é. O que fazem. Do que conversam.
O lugar-comum seria falar deste contraste. E chamamos-lhe “lugar-comum” por alguma razão. Permanece. Repete-se. Não se esbate. Ao contrário, autoalimenta-se.
A caminho de cá, perguntei-lhe no aeroporto em Paris: “E tu, não tomas o medicamento anti-malária?”. A gargalhada discreta, mas certeira, preparou o caminho da resposta. “Não preciso. Caí num caldeirão quando era pequeno. Como o Obelix.” O Alain nasceu e cresceu no Burundi. Neste momento o país mais pobre do mundo. Não é dos mais pobres. É o mais pobre de todos. O último da lista. O Alain terá mais de 50 anos de idade. Vir em missão ao Chade com ele é um privilégio. Para mim que acredito no sopro subtil do Espírito, é uma dádiva.
Aos olhos do meu colega Alain, no Chade – como em tantos outros países subsaarianos – não há lugar a contrastes. Não há compartimentos entre bons e maus. Nós e eles. Pobres e ricos. Pretos e brancos. Poderosos e vassalos. Opressores e oprimidos. Aprendo com o Alain que a acção determinada por um mundo melhor não tem que ser refém desta polaridade. Não pode, aliás. Há um misto de firmeza e condescendência nas suas palavras que inebriam. Inspiram. Mobilizam. Desconcerta-me na sua aceitação da realidade como ela é – intrinsecamente humana, frágil, imperfeita. E, no entanto, sem soçobrar, arregaça as mangas com afinco para mais um dia de reuniões exigentes. Faz inveja este equilíbrio. E depois, aquele sorriso latente, recorrente. Como que a marcar a cadência de um estado profundo de alegria. De celebração por estarmos aqui. Vivos. Implicados. Numa experiência feita de plenitude de intenções e gestos. De trabalho também. Comprometidos com um futuro que gostaríamos de saber melhor para quem cá fica. Mas sem triunfalismos. Nem certezas. Esta realidade – como todas as demais – não se compadece com dogmas nem sentenças. Ao contrário, convive melhor com um questionamento íntimo, transformador a partir das entranhas.
Li há dias aqui no 7MARGENS o artigo sobre a Maria Manuela de Carvalho (1937-2022).
Sugeria algures no texto “um Deus que começa a manifestar-se através da beleza”, sendo essa “a primeira forma de Deus nos atrair”.
Arrepiou-me este trecho. Numa das muitas insónias destas semanas, uma intuição profunda – uma oração talvez – despertava em mim uma revelação semelhante. Que aquilo que nos prende a um movimento unificador, será intrinsecamente estético. Procuro agora, sem resposta, que beleza é esta que me interpela aqui no Chade. Onde se revela, aqui, o Deus em que acredito?
Luis Castanheira Pinto é licenciado em economia, tem-se dedicado às questões do conhecimento, aprendizagem e desenvolvimento de competências e trabalha no Banco Mundial, em Washington DC (Estados Unidos). É casado e pai de três filhos. Viveu anteriormente no Porto, Lisboa, Bruxelas e Copenhaga.