A favor do argumento ontológico – evidência do Absoluto
O argumento ontológico, como é sabido, foi originalmente formulado por Santo Anselmo no séc. XI da nossa era. Segundo ele, se era possível pensar “algo acima do qual nada de mais elevado pode ser pensado”, então esse “algo” pensado teria necessariamente de existir. Pois esse “algo” – a própria Suprema Perfeição, isto é, Deus –, só poderia ser pensado enquanto existente. Por conseguinte, se pode ser pensado enquanto tal, tem necessariamente de existir, caso contrário pensar uma Perfeição Absoluta que não existe não seria, com efeito, pensar a Perfeição Absoluta, mas uma estranha imperfeição.
Descartes, uns quantos séculos mais tarde, formula-o de outro modo: Deus, ou seja, a Suprema Perfeição, pode ser pensado enquanto ideia clara e distinta e, como tal, tem de existir, pois é predicado da Suprema Perfeição a existência (eu acrescentaria, a Suprema Existência). Além do mais, ele não concebia que fosse possível que possuíssemos tal ideia de Perfeição sem que ela tivesse sido implantada em nós pela própria Perfeição, porquanto um ser imperfeito não pode gerar a ideia de Perfeição.
Ora, Kant, também uns séculos depois, vem criticar o argumento ontológico da seguinte forma (para alguns decisiva): não se pode inferir necessariamente a existência do Ser Perfeito a partir da própria ideia de Ser Perfeito, pois a existência não pode ser entendida como um predicado do Ser-Perfeito. Para Kant, o erro estava em atribuir à Perfeição o predicado da existência, como mais um predicado, em pé de igualdade com qualquer outro, como por exemplo o de Suprema Bondade.
Isto equivaleria a dizer que o Ser Perfeito é Sumamente Bom e, já agora, também existe, como se a existência não devesse ser, em qualquer Ser ou Ente, a própria substância ou condição inerente. Mas será que era isto mesmo que Santo Anselmo queria dizer? Ou Descartes? Será que eles pretendiam de facto que a existência que imputavam ao Ser Perfeito fosse um mero predicado, um acidente?
É que pensar a existência suprema (Absoluta, Infinita, Eterna) não implica derivar dela um atributo, digamos, acidental, como seja por exemplo a existência. Não se trata na verdade de uma inferência do tipo “se é Perfeito, logo existe” (tal como o famoso “Penso, logo existo” pode fazer supor), por natureza mediada. Trata-se, na verdade, e antes de tudo o mais, de uma intuição, uma apreensão imediata de uma realidade cuja natureza é a da própria existência-em-si, quer dizer, da Existência Primeira.
Sublinhe-se que aqui Existência não é predicado, mas a própria natureza, substância e ratio essendi dessa Perfeição. Tanto valeria para Santo Anselmo ou qualquer outro chamar-lhe “Perfeição Suprema” ou “Existência Suprema”. Iria dar ao mesmo – a Perfeição Suprema é a Existência Suprema. Consequentemente, se podemos pensar a Existência Suprema, tem de ser necessariamente como existente, até porque com essa ideia vem uma instante intuição de suprema necessidade, inexorabilidade, unidade absoluta. A sua existência surge-nos à consciência como absolutamente necessária. Diria até como a própria Necessidade.
A formulação discursiva e lógica vem depois. Daí que o argumento ontológico não possa ser resolvido apenas do ponto de vista lógico, nem possa, só por si, coagir seja quem for a acreditar na verdade que supostamente visa provar. Porque o salto que ele requer para ser compreendido é da natureza da evidência intelectual subjetiva. Em vez de um argumento, ela pode exprimir-se numa proposição simples (auto-evidente?): aquilo que pode ser pensado como existente-absolutamente-necessário existe necessariamente.
Faço também notar que São Tomás de Aquino criticava o argumento ontológico dizendo que sendo Deus essência e existência, e sendo a essência impossível de conhecer, não era, portanto, possível inferir da essência a existência. Mas repito: a essência da Absoluta Necessidade é a da própria Existência. Não há, portanto, distinção possível entre os dois domínios neste caso.
Não se trata de inferir um do outro, mas de apreender imediatamente a absoluta necessidade na sua verdadeira e inexorável natureza (já Heidegger, o homem da physis como totalidade em devir, avesso às dicotomias académicas e às categorizações escolásticas da metafísica tradicional, dizia que, no homem, essência era existência; se é assim no homem, como não o há de ser, por maioria de razão, no Ser-Absoluto, Deus, Existência Suprema?).
Em suma, a evidência radical de que me habito a mim mesmo, e de que portanto, existo, implica a evidência radical de que a existência é absoluta e necessária. O absoluto da minha existência conduz-me à evidência do absoluto de toda a existência. Tenho, por conseguinte, duas certezas: eu existo, e o Absoluto existe. Por outras palavras: eu existo, e o Infinito-Uno existe. O que quer que eu seja está sustentado num fundamento imortal, absolutamente necessário, absoluto.
Talvez ambas as evidências não passem afinal da mesma evidência radical, que, como um relâmpago, atravessa simultaneamente o meu próprio ser e a Totalidade do Ser. Somos uma expressão do Ser, parte do Todo; não há de ser uma tomada radical de consciência de um ser-para-si-próprio, uma tomada de consciência da própria Totalidade do Ser para si própria – isto é, do Absoluto? Não há de a mesma evidência de um ser irredutível, indissolúvel, absolutamente necessário e uno, que a si mesmo se habita, exprimir a unidade primordial, quer dizer, do Uno-Absoluto?
Se isto é verdade, as implicações são imensas, e não há como negar que existirá uma relação metafísica privilegiada entre a consciência individual e a realidade última, metafísica, do Todo. O mesmo é dizer: que somos dotados de alma – que é a condição necessária da nossa subjetividade individual – e que a Subjetividade Absoluta (chamemos-lhe Deus…) existe mesmo.
Ruben Azevedo é professor e membro do Ginásio de Educação Da Vinci – Campo de Ourique (Lisboa)
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