A favor do argumento ontológico
Evidência do Absoluto (II)
(O primeiro texto sobre este tema foi publicado no Sete Margens em 19 de Junho)
Perante Deus – o Absoluto-Ilimitado-Uno – só nos resta assumir que nada sabemos. Nada senão o essencial, que é tudo – que Ele existe, conquanto reconheçamos a evidência ontológica como evidência. O resto – escrituras, revelações, doutrinas, profetas, preceitos, sistemas –, se não se fundamenta numa experiência singular, pessoalíssima, de conhecimento interior, de gnose, não pode senão ser objeto de fé. E está bem que se tenha fé numa qualquer doutrina, numa qualquer “revelação” posta por escrito, sistematizada, com os seus profetas, preceitos e dogmas, desde que se reconheça que não é aí que está a última palavra, não é aí que reside a evidência, não é aí que está a verdade absoluta; que isso é só o princípio de um longuíssimo caminho, e não o fim.
A verdadeira fé é irmã da dúvida, não como dúvida que paralisa e destrói, mas como janela sempre aberta para o Aberto que é o Ilimitado-Deus, que é quem, em todos os casos, detém sempre a última Palavra. A verdadeira fé não se satisfaz jamais com o literal, não presta culto cego a qualquer doutrina estabelecida, a qualquer tradição oral ou escrita, mas mantém viva e desperta a procura que tem por horizonte apenas uma e uma só certeza – a de que a Verdade existe, a de que o Mistério é real e está vivo.
Se a palavra mata o mistério, amesquinhando-o, tornando-o em mais um instrumento reles ao serviço da ganância ou do poder, da exaltação pessoal ou de grupo, dos jogos vãos do que de mais vil existe na natureza humana, então essa está longe de ser a Palavra. Se a palavra – ou a interpretação que dela se faz – serve para acabar com o silêncio, espezinhá-lo de uma vez para sempre, ao invés de ser uma entrada e um promontório que nos põe diante dele e da visão fascinante, tremenda e infinitamente sublime e comovente do mistério que está para além de qualquer palavra, então essa não é a Palavra.
A realidade é um extraordinário abismo de Ilimitado em todas as direções e dimensões. É isto o Absoluto. Não tendo na sua constituição nenhuma descontinuidade, nenhum vazio absoluto (pois nele o nada absoluto [ou Nada] não pode simplesmente ter lugar), o Absoluto é plenitude de Ser. A isto se chega pela simples consideração de que o Nada, precisamente por ser Nada, não existe nem pode existir, pelo que sobra “apenas” aquilo que existe de facto, que é Tudo.
Esse Tudo, não podendo estar limitado senão por si próprio (caso contrário só poderia estar limitado pelo que é absolutamente diferente de si próprio, que é o Nada [e esse já vimos que é pura não-existência], só pode portanto ser Infinito. Como poderia o Todo terminar naquilo que não existe de todo? E se, por absurdo, o Nada existisse ou tivesse de ser (o que é por si só uma contradição lógica), então o Todo terminaria na mesma em si próprio, pois qualquer espécie de existência seria ainda parte da existência do Todo. Em qualquer caso, o Todo não pode ter limites, se é de facto o Todo, quer dizer, a Existência onde cabem todas as existências. Se o seu limite está no Nada, então não tem limite, pois este é Nada. Se o seu limite está noutra existência, então esse não é na verdade um limite, pois não constitui uma descontinuidade entre coisas fundamentalmente distintas, mas uma continuidade entre aquilo que é, exatamente e na essência, a mesma coisa.
Se existo, é evidente e necessário que alguma coisa exista
Pode esta Existência Absoluta que eu penso, pura e simplesmente não existir, ser um fruto da minha fértil mas pueril imaginação? Suponhamos que sim. O que resta? Resta aquela existência da qual, como Descartes, não posso de todo duvidar – a minha própria, qualquer que seja a sua natureza. Essa evidência radical, a de que existo, a de que, de uma forma ou de outra, existo enquanto interioridade subjetiva, não posso em absoluto negar, embora desconheça quer a sua real natureza, quer a sua real extensão. Que não está definida e não é facilmente definível, limitável, disso estou certo.
Em todo o caso, o que importa aqui é que existo, e se existo, então é evidente e necessário que alguma coisa exista. Ora, se algo existe, a existência enquanto tal é então um facto incontornável. Quer dizer, é mais do que evidente que entre o Ser e o Nada, o Ser é prevalecente em absoluto e, portanto, o Nada absoluto não só não prevalece como não existe pura e simplesmente. Mas será esse facto, apesar de incontornável, uma mera contingência, o fruto de um acaso?
Poderia a existência nunca ter existido; poderá um dia, tal como por acaso surgiu, por acaso desaparecer, ser obliterada, nadificada? Estará o Ser à partida condenado por conter em si mesmo o gérmen da sua precariedade e morte? Ora, isto só seria assim se o Ser, i.e., se a Existência pudesse admitir dentro de si mesma o vazio absoluto e a descontinuidade, mas já vimos que dificilmente é assim. O Ser é, em princípio, pleno, o mesmo é dizer, Absoluto. A sua existência não é fruto de nenhum acaso, mas de uma absoluta e inexorável necessidade.
Mas respondamos às questões:
“Mas será este facto, apesar de incontornável, uma mera contingência, o fruto de um acaso? Poderia a existência nunca ter existido; poderá um dia, tal como por acaso surgiu, por acaso desaparecer, ser obliterada, nadificada?”
Se a nossa resposta for “Sim” a estas duas questões, temos então de admitir que o Nada, que é coisa nenhuma, criou esta existência; e que uma vez esta criada, ela pode voltar ao Nada. Admitimos, por conseguinte, que o nada absoluto é criador de existência, e que a existência – que é a própria negação absoluta do Nada –, pode voltar a essa mesma absoluta não-existência (estranho num universo em que se diz que nada se perde…).
Neste caso, portanto, o Nada seria a norma, e o Ser a estranha exceção. Mas, se como vimos, o Nada é a própria não-existência absoluta – isto é, pura impossibilidade ontológica –, então de onde virá a ideia de que o Nada, num universo onde o que prevalece é a sua absoluta negação (a Existência), possa ser a norma criadora ou nadificante de todas as coisas? Como se pode alguma vez afirmar com verdade e justiça científica, por exemplo, que o universo veio do nada, senão em termos estritamente figurativos ou metafóricos!?
“Estará o Ser à partida condenado por conter em si mesmo o gérmen da sua precariedade e morte?”
Nesta questão, como vimos, a própria impossibilidade da existência da absoluta não-existência (i.e. do Nada) descarta qualquer possibilidade de descontinuidade ou vazio absoluto na natureza do Ser. Logo, não pode haver, no seio do ser-absolutamente-contínuo, qualquer gérmen de dissolução, fragmentação ou decadência na não-existência. “O ser persevera no ser”, escreveu Hegel.
Em face disto, é ou não lícito afirmar que pensar a Existência Absoluta – Una, Perfeita, Infinita – implica necessariamente que ela exista, ao invés disso ser apenas uma fantasia da imaginação? Não é isso afinal que defende o antiquíssimo argumento ontológico?
Ruben Azevedo é professor e membro do Ginásio de Educação Da Vinci – Campo de Ourique (Lisboa)
Artigos relacionados

360 mil saídas em 2021
Caminho Sinodal não evitou “êxodo dos fiéis” numa Igreja alemã em crise profunda novidade
Cerca de 360 mil pessoas abandonaram oficialmente a Igreja Católica na Alemanha no ano de 2021. Um número elevado como nunca! Que se passa afinal? Quem são estes baptizados e baptizadas que se dirigem às repartições do registo civil para declarar que querem desligar-se da Igreja?
Apoie o 7MARGENS e desconte o seu donativo no IRS ou no IRC
Breves
Para mostrar proximidade
Papa envia Secretário de Estado ao Congo e Sudão
O Papa Francisco vai enviar o Cardeal Secretário de Estado, Pietro Parolin, para visitar o Congo e o Sudão do Sul, Kinshasa e Juba, respetivamente, como forma de «mostrar a sua proximidade aos amados povos do Congo e do Sudão do Sul».
Ao Caminho Neocatecumenal
“Tudo na Igreja, nada fora da Igreja”, pede o Papa
O Papa recebeu hoje uma delegação do Caminho Neocatecumenal no Auditório Paulo VI, do Vaticano, pedindo “docilidade e obediência”, com particular atenção à ligação com os bispos de cada diocese. Num curto discurso, ao qual juntou algumas palavras de improviso,...
De 1 a 31 de Julho
Helpo promove oficina de voluntariado internacional
Encerram nesta sexta-feira, 24 de Junho, as inscrições para a Oficina de Voluntariado Internacional da Helpo, que decorre entre 1 e 3 de Julho. A iniciativa é aberta a quem se pretenda candidatar ao Programa de Voluntariado da Organização Não Governamental para...
Declaração conjunta
Conselho Mundial das Igrejas condena guerra na Ucrânia
O Conselho Mundial das Igrejas (CMI) condenou de forma veemente a guerra na Ucrânia.
Isenção de propinas
Católica lança programa de bolsas para refugiados
A Universidade Católica Portuguesa vai atribuir 24 bolsas de estudo para refugiados com isenção de propinas. a Universidade declara que “junta-se ao esforço nacional de acolhimento e integração dos refugiados com o lançamento de um programa de atribuição de bolsas”, num comunicado enviado ao 7MARGENS.
Inscreva-se aqui
e receba as nossas notícias
Boas notícias

L'Osservatore di Strada
Um jornal do Vaticano para dar voz aos sem-abrigo
São 12 páginas para fazer a diferença: o Vaticano vai lançar esta quinta-feira a primeira edição especial do seu jornal, L’Osservatore di Strada, em versão online e impressa, para dar voz a quem vive na rua, muitos deles junto à Praça de São Pedro.
É notícia
Entre margens
Saúde mental dos jovens: a urgência de um novo paradigma novidade
A saúde mental dos jovens tem-se vindo a tornar, aos poucos, num tema com particular relevância nas reflexões da sociedade hodierna, ainda que se verifique que estas possam, muitas das vezes, não resultar em concretizações visíveis e materializar em soluções para os problemas que afetam os membros desta mesma sociedade. A verdade é que, apesar de todos os esforços por parte dos profissionais de saúde e também das pessoas, toda a temática é, ainda, envolvida por uma “bolha de estigmas”, o que a transforma numa temática-tabu.
O segredo da multiplicação
Se houve alguém que soube colocar as suas qualidades excecionais de comunicador e de mobilizador de vontades, foi o cónego João Seabra.
Por onde pode começar a sinodalidade?
Será que os grupos que se reúnem para realizar como comunidade este percurso sinodal se lembram do gesto mais simples e mais evidente que o ser humano consegue identificar à distância? Um gesto que pode iluminar uma sala inteira sem se acender a luz? Um gesto...
Cultura e artes
"The Red Hand Files"
“Enough!”. O fã que se fartou das “tretas” de Nick Cave sobre Deus
A mensagem é curta e grossa: “For fuck’s sake, enough of the God and Jesus bullshit!” – a tradução pode ser suavizada, ou carregada nas tintas. Dada a ira do leitor de Nick Cave, o tom será mais o calão forte que a interjeição zangada. “Caramba! Chega desta treta de Deus e Jesus!”
Projeto polémico
Movimento cívico organiza cordão humano pela não destruição do património da Sé de Lisboa
O movimento cívico “Apoiar a Sé de Lisboa 2022” promove este sábado, 25 de junho, um cordão humano pela preservação e musealização adequada dos vestígios arqueológicos da Sé Patriarcal. A concentração está marcada para as 11h, em frente à catedral.
Clérigos e Misericórdia do Porto
Um “tesouro literário português” entregue à Biblioteca do Vaticano
O presidente da Irmandade dos Clérigos e o provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto entregam na Santa Sé um manuscrito da Tragédia Amorosa de Dona Inês de Castro, obra histórica do poeta quinhentista António Ferreira.
Livro de João Reis
“Cadernos da Água”, um romance a ler
É um livro envolvente e inquietante. Alienante, só se for no sentido de nos transportar para outra realidade, mas de nenhum modo sem nos deixar sossegados no nosso hoje. Cadernos da Água é o seu título, João Reis o seu autor. Valeram a pena as horas intensas de leitura que lhe dediquei, porque me alargaram os horizontes da vida e da esperança.
Sete Partidas
Acolher sem porquês
Eu e o meu namorado vivemos na Alemanha e decidimos desde o início da guerra na Ucrânia hospedar refugiados em nossa casa. Pensámos muito: nenhum de nós tem muito tempo disponível e sabíamos que hospedar refugiados não é só ceder um quarto, é ceder paciência, muita paciência, compreensão, ajuda com documentos…
Aquele que habita os céus sorri
a quem pediram autorização os profetas?
Breve comentário do p. António Pedro Monteiro aos textos bíblicos lidos em comunidade, no Domingo XIII do Tempo Comum C. Hospital de Santa Marta, Lisboa, 25 de Junho de 2022.
Agenda
[ai1ec view=”agenda” events_limit=”3″]