
“Ao olhar um grupo de crianças a brincar na rua (ainda as há!), custa-me engolir a evidência de que, para estas crianças, um dia de escola pode significar o maior dos perigos.” Foto: Carrinha com insufláveis para venda, South Padre, Texas, abril de 2023. © Sara Leão
A caminho do sul do Texas, a dois palmos da fronteira com o México, cruzei-me com uma mãe e uma filha numa casa de banho da estação de serviço. A menina estava dentro da cabine da casa de banho e, cá de fora, a mãe cantarolava-lhe uma canção em espanhol. Pelo meio, ia-lhe perguntando como se dizia esta ou aquela palavra em inglês, ao que a menina respondia pronta e acertadamente. Quando por fim saiu da cabine e deu de caras comigo, uma testemunha inesperada do momento de intimidade, assustou-se, para depois substituir o susto por um enorme sorriso.
A 24 de maio de 2023 cumpre-se um ano da data do massacre na escola de Uvalde, Texas, onde 19 crianças foram mortas, assim como dois adultos, além dos muitos feridos. Neste tipo de massacres, que já se tornaram comuns nos EUA, os homicidas tendem a usar o mesmo tipo de arma, uma espingarda semiautomática que se aproxima a uma arma de guerra, para terem a capacidade de matar o maior número de pessoas no menor período. A hustle culture, a idolatria da produtividade, nunca descansa, nem no território da morte.
Ao olhar um grupo de crianças a brincar na rua (ainda as há!), custa-me engolir a evidência de que, para estas crianças, um dia de escola pode significar o maior dos perigos. No Texas, as armas estão por todo o lado e, absurdamente, o nome “Jesus” encaixa frequentemente no discurso que defende o direito a tê-las à disposição e prontas a engatilhar.
Da mesma forma, podem-se ouvir políticos na Câmara dos Representantes deste estado a argumentar a favor da punição física de crianças nas escolas públicas (nas escolas privadas tal pode ser assumido como um dado adquirido?), usando para isso citações das Escrituras. Foi recentemente aprovado que, a partir de setembro deste ano, os Dez Mandamentos deverão estar expostos em todas as salas de aula. Ao “Não matarás“, a cultura das armas acrescenta um “a não ser que…”
É para este lado da fronteira que milhares de migrantes continuam a considerar que vale a pena trilhar quilómetros sem fim. Tal permite deduzir que lhes são familiares violências maiores e que, pelas suas contas, o risco que estas terras acarretam ainda resulta num saldo positivo. Têm vindo a crescer os números de menores desacompanhados que atravessam a fronteira e, a par, aumentam também os números do trabalho infantil nos EUA.
Perante as narrativas que pintam os migrantes como criminosos, organizações como a Arte de Lágrimas expõem imagens diferentes, da autoria das crianças em questão. De acordo com o seu site, “A Arte de Lágrimas usa a arte para contar a história de crianças e jovens refugiados da América Central que cruzam a fronteira do México com o Texas. A Arte de Lágrimas teve início em 2014, como resposta ao número crescente de jovens migrantes detidos na fronteira. Muitas dessas crianças e jovens viajaram durante semanas de camioneta, comboio, carrinha e a pé, de modo a chegarem aos Estados Unidos. Ao longo do caminho, sobreviveram à violência, à falta de comida e de água, e à separação das suas famílias. À chegada, a maioria dos migrantes apresentou-se aos agentes da Patrulha de Fronteiras, tendo sido detidos em condições adversas de má alimentação, temperaturas gélidas e acomodações sobrelotadas”.
Uma outra organização muito ativa no apoio a migrantes é a Interfaith Welcome Coalition, igualmente fundada em 2014. Nasceu da urgência de resposta face às necessidades das crianças e jovens que chegavam por sua conta aos EUA, e atualmente reconfigurou-se, funcionando como uma rede de várias organizações de diferentes confissões religiosas que cooperam no serviço a refugiados, requerentes de asilo e migrantes com falta de recursos. No Texas, também há pessoas a quem os textos bíblicos conduzem ao caminho da Vida e do acolhimento.
Voltando do Sul, mesmo estando a uns largos quilómetros do lado de “dentro” da fronteira, encontramos postos de controlo na estrada, com sinais a indicar que os animais domésticos devem ser mantidos sob guarda, pois os cães-patrulha andam a exercer as suas funções.
Aguardamos pacientemente no nosso lugar na fila. Enquanto isso, ouvimos as notícias. Um tiroteio numa festa de aniversário no Alabama, quatro mortos e mais de vinte feridos, muitos deles adolescentes. Um tiroteio no campus de uma universidade na Pensilvânia, dois feridos. Alguém no nosso carro solta um “Jesus!!” e continuamos a marcha lenta. Na rádio, voltam à animada emissão musical.
Sara Leão é mediadora educativa e formadora de Português Língua Estrangeira.