
O cartaz original patrocinado pelo movimento Birds Are’t Real que foi erguido em Memphis, Tennessee (EUA). Há vários pássaros empoleirados no canto superior esquerdo do outdoor. Este movimento quis provar que as pessoas acreditam facilmente em patranhas, como a da “grande substituição”. Foto © Andrewj0131, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons.
Terminava com uma referência à “grande substituição”, colocada entre aspas, o texto aqui publicado no domingo passado sobre uma ocorrência que, apesar de falsa e delirante, foi considerada verdadeira por um número significativo de cidadãos dos Estados Unidos da América (mais de um milhão, segundo a CBS News). A “grande substituição” a que se aludia era a dos pássaros – das aves verdadeiras, trocadas por drones de vigilância ao serviço da CIA. O principal autor desta imputação tem vindo desde há poucos meses a afirmar, designadamente em entrevistas, que, afinal, se tratou de uma invenção com um objectivo simples: tornar evidente que as pessoas acreditam muito facilmente em qualquer género de patranhas. Com a patranha forjada em 2017, o movimento Birds Aren’t Real foi multiplicando adeptos, mas daí não veio grande mal ao mundo.
Outras teorias da conspiração não têm, todavia, um balanço igualmente inócuo para apresentar. Uma delas defende que estamos perante uma “grande substituição”; não ornitológica, mas humana. No Ocidente, como sustentam os adeptos dessa teoria, a raça branca, cristã, está a ser substituída por asiáticos, hispânicos, negros ou muçulmanos e judeus. A ideia é velha. Mas em 2011 o escritor francês Renaud Camus recuperou-a na obra Le Grand Remplacement. Marine Le Pen e Éric Zemmour difundiram-na, a seguir, sabendo que semeando medo podem recolher votos. Os arautos da teoria da “grande substituição” propagam o temor desta permuta, em curso, dos povos nativos dos países ocidentais por imigrantes chegados de outros continentes, executada, dizem, com a cumplicidade activa das elites “substituidoras”. Com “a grande substituição”, acrescentam, o Ocidente está a tornar-se vítima de uma colonização mais ofensiva do que a colonização que ele próprio empreendeu. A ideia ostenta um potencial mobilizador para a extrema-direita racista conspiracionista, mesmo que vários demógrafos tenham demonstrado a sua falsidade.
O demógrafo francês Hervé Le Bras, por exemplo, já evidenciou em diversas ocasiões o quão absurda é a hipótese. No diário católico La Croix, afirmou que, em relação à França, onde os adeptos da teoria não escasseiam, extrapolando as tendências actuais da imigração e da fecundidade dos imigrantes e dos seus descendentes se verifica que é impossível haver, nas próximas décadas, a tal “grande substituição”. Considerando que o número de imigrantes da África e da Ásia aumenta a cada ano na mesma proporção, haveria, em 2050, 10,2 milhões de imigrantes, 8,2 milhões de descendentes de imigrantes e 60 milhões de não imigrantes. O dito perigo da grande substituição não é demograficamente vislumbrável.
A ideia seria, portanto, apenas errada, se não se desse o caso de se ter transformado numa teoria criminosa. Diversos indivíduos que defendem a supremacia branca têm evocado a periculosidade da “grande substituição” para matar pessoas.
A teoria da “grande substituição”, não de pássaros, mas de pessoas, voltou às primeiras páginas na segunda-feira e às páginas interiores nos dias seguintes por causa do assassinato a tiro de dez pessoas, quase todas negras, ocorrido durante a tarde de sábado, 14 de Maio, num supermercado em Buffalo, no estado de Nova Iorque. O homicida é um rapaz de 18 anos que disse ser um supremacista branco, fascista e anti-semita e professar a teoria da “grande substituição”. O diário The New York Times de segunda-feira recordou que este tiroteio em massa tem em comum com outros a circunstância de perfilhar “uma crença em constante mutação, agora comummente conhecida como teoria da substituição” [1]. Nota o jornal que “nos extremos da vida americana, a teoria da substituição – a noção de que as elites ocidentais, às vezes manipuladas por judeus, querem ‘substituir’ e enfraquecer os americanos brancos – tornou-se um motor do terror racista, ajudando a inspirar uma onda de tiroteios em massa nos últimos anos”.
Um editorial do diário francês Le Monde recordou que a violência tem sido politicamente instigada, tendo Donald Trump participado no declínio das normas democráticas, designando os adversários como inimigos a abater [2]. À lista culposa pela crispação, o Monde acrescentou o incendiarismo que tem lugar assíduo na Fox News e a irresponsabilidade demonstrada pelas redes sociais que difundiram o ataque terrorista, filmado em directo por aquele que o cometeu. A somar, há ainda a oposição política do Partido Republicano a qualquer limitação da venda de armas.
Como tantas ideias paranóicas, a teoria da “grande substituição”, com tão sinistro cadastro, tem sequazes em todo o lado. Incluindo em Portugal. Mas, cá, como em todo o lado, a “grande substituição” que, de facto, se impõe é a que troque o rancor pela concórdia, a violência pela convivialidade.
Notas
[1] “A Toxic Belief That the White Race Is at Risk Drives Violence”. The New York Times, 16 de Maio de 2022
[2] “L’extrême droite aux Etats-Unis, un empoisonnement meurtrier des esprits”. Le Monde, 17 de Maio de 2022