
O presidente Zelensky fala aos jornalistas em Bucha. Foto @ Presidência da Ucrânia
Tenho acompanhado a guerra na Ucrânia através dos noticiários da TV. O que a TV e a imprensa quotidiana relatam é tão horroroso que pergunto a mim mesmo se não haverá, da parte dos jornalistas, um propósito sensacionalístico ou, pior, se consciente ou inconscientemente usam as notícias como instrumento de propaganda em favor de uma das partes em conflito, seja o Ocidente, seja a Rússia. Mas se todas as notícias são autênticas, a guerra só pode acabar com a aniquilação de um dos contendores. A possibilidade de um acordo como resultado das conversações, que os noticiários continuam a mencionar, torna-se cada vez mais improvável. Dir-se-ia, até, que faz parte das estratégias do combate. A culpa do fracasso das conversações é sempre do “outro”. De facto, uma vez iniciado o recurso à violência, o diálogo torna-se cada vez mais difícil. A violência gera a violência. Sabemo-lo muito bem depois do assassinato de Gandhi e de Luther King. E também depois das cruzadas e da Inquisição, apesar das tentativas de teólogos tão respeitáveis como Santo Agostinho, para justificar a “guerra justa”. De facto a violência e a guerra são incompatíveis com o Evangelho. Para o cristão não há guerra justa nem injusta. A guerra é sempre fonte de injustiças.
É verdade que a História tem sempre mostrado como é difícil construir a paz. Mas a incompatibilidade da guerra com o Evangelho permanece. Não podemos desistir de procurar a paz, isto é, a Vida. Temos de lutar por todos meios para que a Vida não morra. Temos de percorrer todos os caminhos que podem conduzir à paz, mesmo temporária, mesmo parcial, mesmo imperfeita. Temos de usar todos os meios, sejam eles, até, o esforço para conhecer as razões do adversário, a partilha das soluções, ou a cedência parcial.
Estes pensamentos não são meras especulações. Exigem de nós uma atitude muito concreta em face de eventualidades tão trágicas como a guerra da Ucrânia, aparentemente sem solução a não ser a vitória ou a morte.
A este respeito queria chamar a atenção para um artigo publicado há poucos dias no 7MARGENS pela professora Luísa Ribeiro Ferreira, que aponta, ao mesmo tempo, para o recurso uma visão diferente da habitual, e para orientar estratégias de combate à inevitabilidade da “vitória ou morte”.
A professora Luísa Ribeiro Ferreira baseia-se na diferença entre a ética masculina e a ética feminina. “As mães lutam para preservar a vida e o bem-estar dos filhos. A guerra sacrifica esses mesmos filhos em prol do bem-estar de uma Nação ou de um Estado. O pensamento maternal, concreto e situado, opõe-se ao pensamento guerreiro e militarista, que é abstracto e simplificador. Os ideais genéricos podem dar azo a acções eticamente condenáveis em que o ‘outro’, na sua radical alteridade, é considerado um mero número”.
Nas minhas cogitações tenho perguntado a mim mesmo porque é que o caminho do conflito enveredou apenas para a guerra e não para o caminho da persuasão. Se a Rússia quer anexar a Ucrânia, porque é que não tenta o acordo possível em vez da aniquilação? Os acontecimentos têm evoluído no sentido oposto, tornando este raciocínio aparentemente ridículo ou demasiado ingénuo. Mas a pergunta mantém-se. Mesmo que se atirem para o adversário as culpas do fracasso das conversações elas têm de continuar.
O artigo da professora Luísa Ribeiro Ferreira, em homenagem às mulheres ucranianas pelo seu comportamento na guerra, ajuda-nos a ter em conta um aspecto diferente daqueles que constituem a quase totalidade das notícias transmitidas pelos jornais e a TV, e que, todavia, é mais profundo e mais portador de esperança. Trata-se do que a Autora chama as “éticas do cuidado” por oposição às “éticas da justiça”. Estas fundamentam a relação individual, aquelas a relação maternal. Enquanto as primeiras fornecem a justificação das posições ditadas pela luta armada, as segundas inspiram as práticas que conduzem à paz. O ponto de vista maternal, diz ela, “procura, sempre que possível, evitar os conflitos”, o ponto de vista individual e masculino pode conduzir às “práticas violentas, como a guerra”.
Boris Johnson, nas suas declarações, tem afirmado que a guerra pode durar anos. Evidencia a gravidade do conflito e a dificuldade de uma solução. É uma opinião baseada num ponto de vista masculino. A ética feminina do “cuidado”, cuja importância é salientada pela professora Ribeiro Ferreira, é uma ética de esperança. A fuga à guerra, que engrossou a emigração das famílias ucranianas a um ponto inaudito, colocou as mulheres ucranianas em posição de destaque. Não pode deixar de sustentar a continuação das conversações e, por isso, a esperança da paz. As famílias de emigrantes ucranianas formam uma verdadeira “diáspora” constituída sobretudo por mulheres. Os construtores da paz não podem deixar de valorizar a contribuição maternal para poderem alcançá-la. Enquanto Putin confiar só nas armas para fazer da Rússia a condutora da nação destinada a criar a sua utópica “Eurásia aberta”, se não passa de uma mera adulação de Medvedev, torna-se uma fantasia perigosa, fonte de guerra sem fim e de sofrimentos inúteis. O contributo das mulheres para a continuação das conversações, que não foi ainda acentuado pelos comentadores, mas tem sido tacitamente usado por António Guterres, é uma verdadeira fonte de esperança.
José Mattoso é historiador; A História Contemplativa (Temas e Debates, 2020) é o seu último livro.