A hermenêutica de Jesus (2): Jesus e o seu manifesto

| 11 Mar 2022

Gerbrand van den Eeckhout, Cristo ensinando na Sinagoga de Nazaré (1658). Dublin, National Gallery of Ireland

Gerbrand van den Eeckhout, Cristo ensinando na Sinagoga de Nazaré (1658). Dublin, National Gallery of Ireland.

 

(A primeira parte deste texto pode ser lida aqui.)

Talvez umas das perícopes mais marcantes dos evangelhos e que nos revela aquilo que o próprio Jesus entendia acerca do seu próprio ministério é a que se encontra em Lucas 4:14-30. Jesus tinha acabado de ser tentado no deserto da Judeia e agora, orientado pelo Espírito, dirige-se para a Galileia dos gentios e, de seguida, para Nazaré, onde havia sido criado. Como era seu costume, no sábado entrou na sinagoga. Foi-lhe dado o rolo de Isaías, de onde leu a famosa passagem do início do capítulo 6:

“O espírito do Senhor [está] sobre mim,
porque me ungiu para anunciar a boa-nova aos mendigos;
enviou-me a proclamar aos presos a libertação
e aos cegos a recuperação da vista;
a mandar em liberdade os oprimidos,
a proclamar um ano aceitável da parte do Senhor.”

Lucas prossegue o seu relato dizendo que “Jesus fechou o livro, devolveu-o ao assistente e assentou-se. Na sinagoga todos tinham os olhos fitos nele”. Seria interessante fazer aqui um pequeno exercício mental, tentando transportar-nos para dentro daquele espaço há cerca de quase dois mil anos. A Galileia, fortemente nacionalista, era conhecida naquele tempo pela grande agitação política, ocorrendo diversas revoltas contra o poder da potência ocupante romana.

Jesus acaba de ler a passagem e, diz o evangelista, todos tinham os olhos fixados nele. Interessante que a palavra grega ἀτενίζοντες, traduzida muitas vezes para o nosso vernáculo, não transmita a força do original. Todos estavam com o olhar fixado no Senhor, com uma intensidade tal, na expectativa do que Ele iria dizer a seguir. A sala da sinagoga está suspensa, possivelmente tudo em silêncio e Jesus provavelmente terá olhado ao seu redor, fixando igualmente o olhar amoroso e meigo em cada um dos rostos daqueles que o viam.

O que estará a acontecer? Não terá Jesus esquecido de dizer algo? A passagem de Isaías 61, tão bem conhecida por qualquer judeu piedoso, tanto na versão hebraica, como na versão grega da Septuaginta das escrituras hebraicas que o evangelista usou, foi propositadamente truncada pelo próprio Jesus. O texto em falta fala de um “dia de retribuição”, do “dia de vingança de Yahweh”. Mas Jesus fá-lo intencionalmente, contra todas as expectativas dos seus ouvintes e, após ter entregado o rolo ao responsável da sinagoga, diz algo extraordinário, inimaginável: naquele mesmo dia e hora se deu como cumprida aquela passagem da Escritura.

Dizem os versículos seguintes que, grosso modo, na assembleia “todos davam testemunho em seu favor e se admiravam com as palavras repletas de graça que saíam da sua boca”, até que inesperadamente alguns terão sarcasticamente começado a dizer “Este não é filho de José?” Mas Jesus não terá ficado agradado com a postura dos que o atacavam. Jesus acabará por dizer “Em verdade vos digo que nenhum profeta é aceitável na sua pátria. Em verdade vos digo que havia muitas viúvas no tempo de Elias em Israel, quando o céu se fechou durante três anos e seis meses, de modo que houve uma grande fome em toda a terra; e Elias não foi enviado a nenhuma delas, a não ser a uma viúva que vivia em Sarepta da Sidónia. Havia muitos leprosos em Israel, [no tempo] do profeta Eliseu, mas nenhum deles foi purificado senão o sírio Naama” (Lucas 4:24-27). Aqui o que Jesus faz, depois de criativamente ter reinterpretado a passagem de Isaías, é colocar em relevo aqueles profetas que auxiliaram os mais fragilizados, os forasteiros, os pagãos – sim, esses que eram odiados pelos judeus ortodoxos.

A interpretação, quando não adjuvada pela hermenêutica de Jesus, irá sempre suscitar da parte dos legalistas, dos doutores da lei, reações de ódio, de incompreensão. Muitos daqueles que ouviram Jesus naqueles momentos ter-se-iam interrogado “quem é este, que vem aqui falar de um Deus que nos vem libertar, mas que não exerce vingança sobre os nossos inimigos?”, “quem é este, que nos vem jogar à cara esses profetas que cuidaram de pagãos, como os sidónios e os sírios?” A reação não se fez esperar: “Encheram-se todos de fúria na sinagoga ao ouvirem essas palavras. E, levantando-se, expulsaram-no da cidade e levaram-no ao cimo do monte sobre o qual a cidade deles estava construída, para o atirarem dali abaixo.” (Lucas 4:28,29).

A hermenêutica de Jesus, tal como exposta ao longo dos evangelhos, extrapola muitas vezes a rigidez da letra das próprias escrituras, remetendo para novas interpretações, novos significados. Não foi isso que também muitos dos profetas fizeram ao longo do tempo? Afinal, o manifesto de Jesus, ao anunciar o ano jubilar do Senhor, é uma boa nova de libertação aos mendigos, de perdão das suas dívidas, de libertação dos cativos, de cura dos enfermos, de abrir a vista aos cegos e de mandar em liberdade os oprimidos e especialmente, dos amargurados e ressentidos de coração.

 

Vítor Rafael é investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona.

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