
Imagem de arquivo (2010) de um grupo de “Católicos pela igualdade”, junto ao edifício do Capitólio de St. Paul, Minnesota (EUA), de apoio à igualdade de direitos para lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros. Foto © Fibonacci Blue, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons.
Como é sabido, o berço da expressão “ideologia de género” encontra-se na documentação do Vaticano. Por diversos motivos, não sendo os de menor importância uma reação a documentos e diretivas das Nações Unidas, da União Europeia e de diversos países relativas aos direitos das mulheres (nomeadamente, no que diz respeito aos direitos reprodutivos e à igualdade de oportunidades) e, mais recentemente, no que diz respeito aos direitos de pessoas LGBTQ (nomeadamente, casamento entre pessoas do mesmo sexo e adopção por casais do mesmo sexo). Basta comparar datas de ratificação de documentos destes organismos, bem como da sua ratificação nos diversos países para perceber este carácter reativo da expressão que, segundo o Vaticano, conferências episcopais pelo mundo fora e movimentos de leigos “desvirtuaria”, de acordo com esta abordagem, o que uma mulher deve ser (mãe, fundamentalmente) e o significado do casamento e de uma família heterossexual.
Muitas vezes é usado o argumento de que a “ideologia do género” pretende destruir a Igreja Católica e destruir a “civilização cristã”. Mas é curioso que a existência de desigualdades gritantes, de migrantes em massa, de xenofobia e de racismo não pareça inquietar quem considera que é a “ideologia de género” que acabará com essa “civilização” e que esse “pânico” esteja a ser instrumentalizado precisamente contra os migrantes, contra quem é considerado como “vindo de fora”, contra quem é considerado como não possuindo “a herança genética” de países europeus!
Para que não se mantenha essa ideia, de que quem critica a forma como o Vaticano equaciona estas questões é porque está fora da Igreja e não compreende a sua doutrina, ou tem vontade de a destruir, é útil, é necessário ter em conta que estas questões estão no centro das preocupações de muitas teólogas e de muitos teólogos, precisamente porque estas posições são achas para as fogueiras da extrema-direita. Deixo aqui apenas alguns exemplos recentes: a prestigiadíssima revista católica Concilium em 2012 já tinha publicado um número sobre Género na Teologia, Espiritualidade e Praxis; em 2019 publicou dois números sobre A Teologia Queer e sobre O Populismo e a Religião. Em 2020, publicou um número sobre Masculinidades – Missões teológicas e religiosas.
A Associação Europeia de Mulheres na Investigação Teológica publicou em 2020 um número da sua revista sobre Género, Raça e Religião: Des/construindo Regimes de In/visibilidade. Maren Behrensen, Marianne Heimbach-Steins e Linda E. Hennig editaram um livro na Alemanha (patrocinado pelo Center for Religion and Modernity), precisamente sobre Género – Nação – Religião, chamando a atenção para a existência deste discurso “anti-género” como instrumento político em diversos países. Não são (só) questões académicas, são questões que dizem respeito à forma como queremos escolher uma sociedade que respeite os direitos humanos na qual a religião, mais concretamente neste caso, o cristianismo, não contribua para o reforço de discursos de exclusão num tempo tão sombrio. É uma questão de consciência, como podemos aferir pela leitura destas publicações, que aqui se recenseiam.
A normatividade deste discurso não só é frequentemente agressiva, violenta contra pessoas com identidade LGBTQ, como é uma repetição de uma concepção da mulher, da sexualidade e da família cega e surda a algumas questões:
– É um discurso que não se dispõe ao diálogo com perspetivas diferentes sem ser numa chave autoritária, inamovível, “alvoroçada”, em pânico: as questões de género (cunhadas como constituindo uma “ideologia”) são tidas como desviantes relativamente ao plano de Deus para a humanidade. Por isso, não se fala de “identidades”, mas sim de “opções”, linguagem que é fácil de compreender, pois que estas ditas “opções” são entendidas como fugindo ao plano traçado por Deus, resultando, portanto, de um livre arbítrio “pecaminoso” ou “desorientado”.
– É um discurso com medo do “mundo” secular e da legislação de estados de direito. Conheço pessoas que tiveram que suportar a vergonha de verem a sua Igreja votar ao lado do Irão em questões relacionadas sobretudo com os direitos reprodutivos das mulheres. No Evangelho de João diz-se que os cristãos não são do mundo, mas, como é sabido isto significa não serem “mundanos”, superficiais, agarrados aos bens terrenos. Não significa alhearem-se do mundo e viverem numa esfera esquizofrénica (cidadãos por um lado, mas de cabeça obediente e sem questões dentro da Igreja).
– É um discurso que não tem em conta a literatura produzida sobre as questões de género por gerações de teólogas feministas. É doloroso que o trabalho de teólogas seja ignorado olimpicamente como se não existisse, no mínimo, desde o Concílio Vaticano II. Sempre que se diz que o conceito de “género” ignora “o génio feminino” e que este aspeto não está devidamente estudado menoriza-se, silencia-se o trabalho crítico de tantas teólogas que trabalham aprofundadamente na verbalização da experiência crente de mulheres concretas, completamente engajadas nas suas comunidades, em contextos académicos, muitas vezes, silenciadas precisamente porque não correspondem a um “figurino” de ser mulher que as petrifica. Não está em causa desvalorizar a maternidade: está em causa utilizar o conceito para desvalorizar o papel e a participação das mulheres na esfera pública. Ignora-se de forma gritante o esforço intelectual que muitas e muitos crentes fazem para não serem excluídos por causa da sua identidade, como se a Igreja tivesse o direito de decidir quem é que Deus ama e a quem é que Deus “perdoa” aquilo que as vozes humanas consideram desviante.
Além destas questões que continuam a arrastar-se numa linguagem que teima em persistir, para gáudio de quem não deseja mudanças, vem, agora, juntar-se algo muito grave, eventualmente pouco conhecido entre nós, mas que começa a alastrar também entre nós: é que a invectivação daquilo que é considerado “ideologia de género” constitui uma das grandes bandeiras da extrema-direita não só na Europa (veja-se o caso do Brasil e das “declinações” desta invectivação por outras comunidades religiosas, nomeadamente, neopentecostais), mas também na Europa. É triste analisar documentos da Igreja sobre o assunto e comparar, por exemplo, com os discursos de extrema-direita na Espanha, na Itália, na Alemanha, na Croácia, na Sérvia, na Grécia (em chave ortodoxa) – só para dar alguns exemplos. É tristíssimo pensar que a Igreja, pela sua inflexibilidade quando se fala de questões de género, pode estar a contribuir para alimentar o monstro da intolerância, nestes tempos sombrios. E vem-me à cabeça a palavra do Evangelho: “ouvistes dizer que… eu porém, digo-vos…”
Teresa Toldy é professora universitária de Ética e teóloga; publicou Deus e a Palavra de Deus nas teologias feministas (Ed. Paulinas)