Este é o primeiro livro que se debruça sobre um monumento nacional – a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa, cujos 50 anos de dedicação esta obra assinala. Uma igreja nascida de um processo que reflectiu os tempos novos que se viviam e procurou traduzi-los na arquitectura. O volume sobre esta “peça maior” da arquitectura portuguesa do século XX será apresentado no auditório da igreja nesta quinta-feira, 17, ao final da tarde.

Cruz exterior, na rua Camilo Castelo Branco: uma “obra singular da arquitectura portuguesa do século XX”. Foto © Hugo Casanova, cedida pelo autor.
Há meio século, quando se fez a cerimónia de dedicação da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, o bairro do Marquês de Pombal, em Lisboa, tinha cerca de 20 mil habitantes. Por isso, o projecto e construção incluiu um programa que previa espaços para atendimento, acção social, apoio a pessoas desfavorecidas, residências para padres e estudantes e um auditório com meia centena de lugares. Ao mesmo tempo, sonhava-se uma igreja que traduzisse, na sua arquitectura, uma nova relação de abertura à sociedade que a instituição Igreja dava mostras de querer ter, depois da realização do Concílio Vaticano II.
Cinco décadas depois, os habitantes de toda a zona da paróquia serão menos de quatro mil – no recenseamento de 2011 já estavam abaixo dessa marca e desde então a situação só piorou. Ao contrário, aumentou o número de escritórios, empresas de serviços e unidades hoteleiras – que desde há um ano estão em utilização dramaticamente reduzida. Ou seja, aumentou o número de pessoas passantes, que circulam no bairro durante o dia, mas as ruas esvaziaram-se e desertificaram-se à noite.
A terciarização da zona e a redução da população é um fenómeno que já se notava, no entanto, quando se iniciou o processo que levaria à construção da igreja, como recordam João Alves da Cunha e João Luís Marques, no texto que escrevem no livro que nesta quinta-feira, 17, a partir das 18h, será apresentado no auditório da igreja. A obra assinala os 50 anos da dedicação do altar, completados a 19 de Junho do ano passado.
Hoje em dia, “a Baixa de Lisboa estende-se até à área da paróquia, ou seja, impera a mobilidade e o pluralismo dos relativamente poucos residentes e dos muitos ‘passantes’”, acrescenta o padre António Janela, actual pároco do Sagrado Coração de Jesus no prefácio do livro Igreja do Sagrado Coração de Jesus – Lisboa. 50 Anos de Arquitetura Religiosa Moderna / 1970 – 2020 é o título da obra.
“Justamente” monumento nacional

Coordenada pelos arquitectos Cátia Santana e João Alves da Cunha, com fotos actuais de Hugo Casanova, a obra será apresentada pela arquitecta Madalena Cunha Matos, que também assina a introdução do volume.
No livro, incluem-se ainda estudos sobre o que foi o concurso e o processo que levou à construção da igreja e complexo paroquial do Sagrado Coração, a sua actualidade, a acta do júri, o programa do projecto vencedor, esquissos e registos fotográficos – da época da dedicação e contemporâneos. No final, insere-se ainda uma versão dos textos em inglês.
Esta é uma “obra singular da arquitectura portuguesa do século XX”, dizem os autores do livro”, lembrando que a igreja e complexo foram “muito justamente” reconhecidos como Monumento Nacional em 2010 – depois de já terem sido vencedores do Prémio Valmor, em 1975.
Na introdução do livro, Madalena Cunha Matos acrescenta outro factor a sublinhar a sua importância: esta peça maior na História da arquitectura do século XX em Portugal “não merecera até agora um livro dedicado”.
A obra que hoje será apresentada a público (e que ficará também à venda nos serviços da paróquia) “vê hoje a sua valia destacada por um guião expressamente preparado, cuidadoso e revelador de novos aspectos, por Cátia Santana; por um ensaio fotográfico por um jovem estudioso da arquitectura religiosa, Hugo Casanova; e por um aturado estudo histórico por dois dos investigadores mais conhecedores no país da arquitectura da Igreja Católica, João Alves da Cunha e João Luís Marques.” E todos estes são elementos “fundamentais para a compreensão” do conjunto, acrescenta a arquitecta.
“Urbanidade e interioridade”

A dedicação da igreja em 19 de Junho de 1970 concluiu o processo longo, iniciado em 1962 com o concurso público que teve a participação de 66 arquitectos, reunidos à volta de 14 trabalhos. Um número que, apesar do “mérito da maioria” dos trabalhos apresentados, o júri considerou frustrante, pois tirou à prova o “carácter de ampla representação que se esperava lhe fosse dado”.
O primeiro lugar acabaria atribuído ao projecto dos arquitectos Nuno Teotónio Pereira (1922-2016) e Nuno Portas (1934). “Igreja cosmopolita, foi inovadora na sua inserção urbana, mas também na experimentação e uso do betão, incorporando o conhecimento técnico e as influências artísticas da época no panorama arquitectónico dos anos 1960”, descrevem os coordenadores.
Viviam-se, recorde-se, tempos de efervescente renovação do catolicismo europeu e mundial, com a realização do II Concílio do Vaticano. E no seu espaço interior a igreja reflecte também as novas concepções que o concílio propunha, de maior participação dos fiéis na assembleia litúrgica – daí a forma de anfiteatro que a igreja assume no seu interior.
Resumem ainda os autores que a igreja e o centro paroquial conjugam “urbanidade e interioridade, síntese de uma vontade de abrir o seu espaço central à cidade, à comunidade e à participação religiosa, no espírito do Concílio Vaticano II.”
As etapas do guião para uma visita arquitectónica proposto no livro por Cátia Santana dão conta também dessas intuições: a cidade entra na igreja, reflectindo as preocupações de “relação com a envolvente” e tendo em conta também o espaço exíguo e desnivelado em que a igreja foi edificada, num gaveto com sete metros de diferença na cota das ruas de Santa Marta e Camilo Castelo Branco. Resulta, assim, um “espaço engenhoso” que conjuga “luz, sombra, interioridade, geometria e complexidade”.
“Empurrar uma porta e entrar no silêncio”

Essa ligação com a cidade, numa relação de continuidade com o espaço urbano mas que, ao mesmo tempo, cria uma ruptura com o ruído e o movimento é explicada no texto introdutório de Madalena Cunha Matos: “Às vezes apetecia-me baixar ao Largo das Palmeiras pelo elevador minúsculo, descer a Rua de Santa Marta, mergulhar sob os Correios, passar a escuridão, infiltrar-me pelos pátios, subir, subir, empurrar uma porta e entrar no silêncio. Fazer, fazer nada. A fé ficara lá pela adolescência. Estar, sim, estar naquele espaço. Olhar a penumbra. Tocar a madeira dos bancos corridos. Caminhar pelas pedras lisas. Talvez subir a uma das bancadas. Escolher um ângulo para contemplar a luz vinda lá de cima, banhando a enorme parede texturada cinza. Mudar de lugar, ir ver se o vidro é transparente ou translúcido, vislumbrar as profundezas sob o altar, perscrutar as saliências, abandonar-me finalmente ao vazio.”
O espaço reflecte, diz ainda Madalena Cunha Matos – que é também professora da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa – o “apelo a uma religião menos entrincheirada, mais aberta”, mesmo na amálgama de pormenorização, de dobras, de cimalhas, de caixilharias, de recantos, de blocos, de guardas, de luminárias, de estrutura, de níveis; que no entanto fabricaram o espaço sacro mais audaz da cidade após o Manuelino”. E justifica: “A abóboda dos Jerónimos ecoa nestes losangos da laje horizontal da cobertura, pelos mesmos motivos de dar forma à estrutura e dar expressão à forma estrutural. (…) O ápex de toda a massa construída do complexo lisboeta do Sagrado Coração de Jesus reside na extraordinária dimensão vertical da zona do altar com a luz tornada palpável pela incidência vertical da claraboia.”
Uma igreja para mais 50 anos? No prefácio, o padre Janela levanta o véu sobre novos caminhos, que ultrapassem a encruzilhada em que a igreja e a paróquia estão: “O modelo de paróquia rural, que aqui dominou por dezenas de anos, está esgotado. Urge repensar a pastoral paroquial em termos urbanos, em que o território assume características bem diversas – uma Igreja na e para a cidade, uma igreja ‘em saída’, sem burocráticas fronteiras, aberta e acolhedora, atenta e disponível, anunciadora e iniciadora em Cristo.”
No fundo, isto significa actualizar o que já se previa no programa de há 60 anos que levou à construção da igreja, defende o actual responsável da paróquia: “Importa lançar, aproveitar, dinamizar os espaços disponíveis, pô-los ao serviço da evangelização, com tudo o que isso significa de abertura e de diaconia aos mais carenciados de bens materiais e de bens espirituais. Curiosamente, encontramos já expressa essa intenção lendo agora os textos e testemunhos dos autores desta obra arquitectónica de 1970.”

(Sobre a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, pode ver-se o documentário do programa Visita Guiada, da autoria de Paula Moura Pinheiro, disponível na RTP Play)