No passado dia 10, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a Comissão Independente para o Estudos dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa organizou uma conferência sobre o tema dos abusos, conforme o 7MARGENS noticiou. Pela importância do tema, da iniciativa e das intervenções nela realizadas, publicámos já as intervenções do coordenador, bem como da socióloga Ana Nunes de Almeida, e de Álvaro Laborinho Lúcio, que integram também a comissão.
A seguir reproduzimos a intervenção do jornalista João Francisco Gomes, autor do livro Roma, Temos Um Problema, que foi convidado a intervir na sessão.

João Francisco Gomes na Gulbenkian: “A Igreja é uma instituição de poder e deve ser escrutinada pela imprensa”. Foto © Ricardo Perna/Família Cristã.
Gostaria de falar, em primeiro lugar, acerca da Igreja enquanto instituição de poder, porque essa é uma das maiores premissas que orientam o meu trabalho enquanto jornalista que se dedica à cobertura dos assuntos religiosos e, em especial, ao escrutínio da atividade da Igreja Católica. Que não haja dúvidas: a Igreja é uma instituição de poder.
Não é um organismo de poder público, o poder de que são detentores os agentes políticos eleitos. Mas é uma instituição de enorme poder social. Tal como as grandes empresas detêm um grande poder económico e, mesmo não sendo eleitas pelos cidadãos, devem ser meticulosamente escrutinadas pela imprensa que está ao serviço dos cidadãos, também é como instituição detentora de enorme poder que todos os meios de comunicação – todos, mesmo todos, incluindo os que são católicos – devem enquadrar a Igreja Católica, submetendo-a a um rigoroso processo de escrutínio mediático a que os grandes poderes têm sempre de ser sujeitos numa democracia como aquela em que queremos viver.
Foi por uma decisão do Papa Alexandre III que, em 1179, o nosso país recebeu autorização para ser independente. É certo que já lá vão os tempos em que o poder civil se submetia ao poder religioso, em que os papas eram os kingmakers e em que não fazia qualquer sentido pensar sequer na divisão entre o poder religioso e o poder civil. Mas o poder da Igreja Católica sobre a nossa sociedade – e falo agora em específico sobre a realidade portuguesa – continua a manifestar-se de múltiplas formas. A Igreja é, ainda, para todos os efeitos, um dos grandes pólos de poder do nosso país.
- O poder da Igreja Católica é, em primeiro lugar, identitário. No nosso país, mais de nove milhões de pessoas continuam a entrar para as estatísticas do número de católicos em Portugal, por via dos batismos – e mais de 7 milhões de portugueses dizem-se católicos quando são questionados sobre isso, de acordo com dados dos últimos censos.
- O batismo é um dos sinais mais indiscutíveis do poder identitário da Igreja Católica: quando nasce um filho em Portugal, o batismo católico parece continuar a ser o grande ritual de iniciação social a que todos acorremos sem perder tempo, mesmo entre as famílias que não são especialmente praticantes da religião. Todos conhecemos esses casos.
- Mas não é apenas o batismo. Em 2021, por exemplo, quase um terço de todos os casamentos realizados em Portugal foram feitos pela Igreja Católica, o que nos leva a crer que uma parte muitíssimo significativa da população portuguesa continua a olhar para a Igreja Católica como a instituição que tem o poder de legitimar e validar os momentos definidores das nossas vidas.
- Além de tudo isto, há ainda uma outra forma de poder que podemos encontrar na Igreja Católica: o poder oficialmente reconhecido pelo Estado:
- Por exemplo, embora o protocolo de Estado não inclua um lugar particular para a Igreja, o cardeal-patriarca de Lisboa continua a ser convidado sistematicamente para sessões solenes no Parlamento, como o 25 de Abril – e a justificação é o reconhecimento da importância histórica da Igreja na nossa sociedade.
- Por outro lado, vejamos o caso da lei da liberdade religiosa. Inicialmente inspirada pelo modelo da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, a lei da liberdade religiosa é um avanço civilizacional significativo no nosso país. Contudo, ao contrário do que seria legítimo esperar, a lei não vale de igual modo para todas as religiões no país – vale para todas excepto para a Igreja Católica, que continua a reger-se pela Concordata.
- Um caso paradigmático de poder da Igreja Católica no nosso país é o do segredo da confissão. A lei portuguesa prevê expressamente a proteção do segredo profissional de um conjunto de profissões: “Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo.” Contudo, mais à frente, a mesma lei diz que o sistema judicial pode determinar a quebra deste segredo em casos excecionais. Todos? Não: há uma exceção específica para o segredo religioso. Uma lei que torna, na prática, o segredo religioso mais sagrado para a lei civil portuguesa do que o sigilo que um psicólogo está obrigado a respeitar perante os seus pacientes. Bizarro? É verdade. Parece uma lei feita à medida para as políticas de segredo da Igreja Católica, que, sabemos hoje, já foram usadas – em Portugal – pela Igreja para esconder, ocultar ou desvalorizar casos de abuso sexual de menores. E, há um mês, a Conferência Episcopal Portuguesa já veio garantir que nunca estará em cima da mesa a possibilidade de discutir qualquer exceção para este segredo, nem mesmo nos casos de abuso. Dá que pensar, verdade?
- Finalmente, há que olhar ao poder implícito em cada paróquia, diocese e região do país. É graças às paróquias e dioceses que grande parte da caridade e do trabalho social deste país é feito. São as paróquias que têm creches, lares de idosos e vários serviços sociais que, sem a Igreja Católica, não existiriam. O padre e o bispo contam-se entre as pessoas mais importantes de vários círculos sociais e continuam a exercer grande poder social. Um poder que foi mais forte durante o Estado Novo – em que o padre era o poder –, mas que ainda permanece em vários outros lugares. A minha experiência a investigar casos de abusos de menores em vários pontos mais rurais do país permitiu-me comprovar isto sem margem para dúvidas.
O resumo de tudo isto é só um: a Igreja Católica é uma instituição de grande poder e não hesita em usar esse poder em seu benefício. Os seus ministros são homens – sim, sempre só homens – em lugares de poder. E, como saberão muito melhor do que eu vários especialistas, é nos contextos de poder que se criam as condições para o abuso, incluindo o abuso sexual. O Papa Francisco sabe-o bem, ao classificar a crise dos abusos na Igreja como uma crise de abusos sexuais, de poder e de consciência.
A Igreja tem de ser transparente

Se a Igreja é uma instituição de poder, então o jornalismo – contrapoder por natureza e por vocação – tem a obrigação de a tratar como tal. Isso significa, naturalmente, submeter a Igreja Católica a um meticuloso processo de escrutínio a que a Igreja não se pode nunca furtar. No entanto, durante séculos, a Igreja Católica recusou sistematicamente esse escrutínio. Simplesmente, durante muitos séculos, a Igreja não achou que tivesse de responder publicamente pelos seus atos. Estava acima do escrutínio que é devido às instituições de poder.
Apesar de os tempos da Igreja como poder oficial já terem passado à história, ainda subsiste na mente de muitos líderes da Igreja – incluindo em vários bispos portugueses – esta ideia de não submissão a qualquer escrutínio público ou dever de transparência. Vários jornalistas que acompanham habitualmente os assuntos da Igreja Católica já tiveram de fazer várias vezes um dos exercícios mais penosos de que tenho memória: contactar as 21 dioceses portuguesas em busca de informação porque a Conferência Episcopal continua a recusar assumir o papel, óbvio na minha opinião, de falar publicamente e a uma só voz em nome da Igreja Católica portuguesa.
Das 21 dioceses, conseguir que metade responda em tempo útil é já um feito notável. Mesmo com prazos alargados, dificilmente conseguiremos que mais do que 12 ou 13 dioceses nos respondam.
Recentemente, ficámos a saber que este não é um drama exclusivo dos jornalistas que procuram – legitimamente – informação sobre a Igreja Católica. A própria comissão independente que foi mobilizada pela própria conferência episcopal para investigar o que se passa dentro da Igreja teve enorme dificuldade em obter respostas de todos os bispos portugueses: ao fim de duas rondas de contactos com todas as dioceses continuavam bispos em falta. Foi preciso uma sessão de embaraço público para que os bispos em falta resolvessem o problema. Repito: uma comissão independente mobilizada pela própria Conferência Episcopal!
A Igreja tem de aprender que é uma instituição de poder e que, por isso, tem de responder em público sobre o que faz. Tem de responder aos jornalistas. Tem de ser transparente – absolutamente transparente sobre a sua atividade.
Quando, em 2019, os bispos de todo o mundo estiveram reunidos durante uma semana em Roma para discutir a crise dos abusos de menores na Igreja, o Papa Francisco e a equipa que organizou a cimeira – incluindo o padre Hans Zollner – dedicaram um dia inteiro a debater a necessidade de transparência sobre o problema. Ao longo dos últimos anos, o Papa Francisco tem reiterado a necessidade de transparência na Igreja Católica, sobretudo no que toca à crise dos abusos. É essencial comunicar sobre o assunto, é essencial responder às perguntas dos jornalistas, é essencial denunciar os casos às autoridades. É essencial que a Igreja não se esqueça de que é uma instituição de poder no meio da sociedade – e esse poder acarreta a responsabilidade de prestar contas perante a sociedade sobre aquilo que faz.

A Igreja não está habituada ao escrutínio, mas vai ter de aprender.
No que toca à crise dos abusos sexuais na Igreja, o jornalismo foi um fator chave para que tenhamos chegado ao momento em que estamos hoje. Não preciso de vos falar da importância das investigações do Boston Globe, imortalizadas no cinema, ou das mais recentes aqui ao lado, em Espanha, com o El País. No ano passado, quando condecorou dois veteranos jornalistas internacionais que acompanham o Vaticano há várias décadas, o Papa Francisco agradeceu o trabalho da imprensa com palavras que não deixam margem para dúvidas sobre o apelo à transparência que o Papa faz repetidamente a todos os bispos: “Agradeço-vos pelo que contam sobre o que está errado na Igreja, por quanto nos ajudam a não o esconder debaixo do tapete e pela voz que dão às vítimas de abuso.”
Durante anos a fio, a Igreja Católica recusou ostensivamente escutar a voz das vítimas. Sabemos hoje que há bispos a quem as vítimas se dirigiram para denunciar casos e que preferiram desvalorizar (no melhor dos cenários) ou calar verdadeiramente, com recurso a ameaças (nos cenários mais negros). Durante anos, as vítimas do abuso sexual, de poder e de consciência foram remetidas para o silêncio pela própria Igreja que tinha abusado delas. Foram vítimas duas vezes: primeiro do padre abusador, depois do bispo encobridor.
Foram os jornais que devolveram a voz a muitas das vítimas – e que encorajaram muitas outras a quebrar o silêncio.
Em Portugal, tentámos fazê-lo também. Em 2018, aquele ano decisivo em que o Papa Francisco entendeu que já não havia nada a fazer a não ser dar um murro na mesa e chamar os bispos de todo o mundo para uma cimeira em Roma, a direção do Observador decidiu que devíamos dar o nosso contributo para um debate mais informado em Portugal, um país em que a hierarquia da Igreja insistia em classificar o problema dos abusos como um conjunto de meia dúzia de casos isolados. Lançámo-nos ao trabalho com uma premissa: pegar nos poucos casos que conhecíamos do espaço público, essencialmente como casos que tinham decorrido no plano judicial, e ir em busca do que tinha acontecido no plano eclesiástico. Durante vários meses, passámos a pente fino os processos judiciais, seguimos o rasto às vítimas, aos abusadores e aos encobridores e descobrimos aquilo que não nos surpreendeu: também em Portugal houve casos flagrantes de encobrimento e de interferência nos processos judiciais.
A investigação levou a que chegassem, depois, à nossa redação múltiplos relatos de outros casos de abuso, muitos que nunca tinham sido mencionados pelas vítimas a ninguém. Falámos com muitas pessoas que nos pediram anonimato e nem nos permitiram que escrevêssemos as suas histórias. Falámos com outras que nos permitiram escrever novas reportagens sobre novos casos, que foram depois investigados pela Igreja. Durante todo este processo, uma realidade foi constante: a dificuldade sistemática em obter informação por parte da Igreja. Ainda hoje é assim. No final, depois de publicadas as reportagens, fomos novamente confrontados com os pronunciamentos críticos de alguns setores mais conservadores da Igreja Católica, para quem o facto de não termos publicado uma extensa lista de novos casos era a prova derradeira de que este problema não existia em Portugal.
Isto não foi na década de 1950 – foi em 2020.

Desde essa altura, a Igreja fez um caminho assinalável de melhoria da sua ação interna, mas também da sua comunicação pública sobre o assunto. Mas não chega: continua a ser praticamente impossível obter informação de muitas dioceses em Portugal. E vários bispos continuam, ostensivamente, a negar a importância do problema.
Há apenas dois anos, um bispo português comparou a frequência dos casos de abuso de menores na sua diocese com a queda de meteoritos na cidade – argumentando que, por isso, não valia a pena criar uma comissão de investigação. Outro bispo disse que não o faria porque não cria comissões para investigar assuntos que não existem. Eles continuam no ativo – se não ouvi deles uma palavra de arrependimento pela brutal insensibilidade e desrespeito que demonstraram perante as vítimas, as muitas vítimas que agora começamos a conhecer em grande quantidade. É caso para dizer que 300 meteoritos são muitos meteoritos.
Pelo contrário, continuamos a ouvir de alguns bispos a incompreensível crítica à imprensa e à informação pública – alegando que é preciso ter cuidado com as notícias para não manchar a reputação da Igreja. Por isso, a Igreja não pode ter dúvidas: mesmo que os bispos continuem a desrespeitar os apelos do Papa Francisco para que sejam transparentes e cooperantes com a sociedade civil, os jornalistas não vão largar os calcanhares da Igreja Católica. O papel moral que a Igreja ambiciona ter na sociedade leva-nos a ser ainda mais rigorosos no escrutínio da sua ação moral.
Em 2019, na cimeira de Roma, o Papa Francisco teve a atitude corajosa de convidar uma jornalista a discursar perante centenas de bispos e cardeais. O discurso da jornalista mexicana Valentina Alazraki foi provavelmente o mais poderoso de todos – precisamente por não ter vindo de um bispo ou cardeal. Gostava de citar um pequeno excerto, porque ela resumiu com palavras melhores do que as minhas aquilo que eu e muitos colegas sentimos:
“Nós escolhemos de que lado estar. E vocês, fizeram-no de verdade? Ou apenas com palavras? Se vocês estiverem contra os abusadores e os encobridores, então estamos exatamente do mesmo lado. Podemos ser aliados, e não inimigos. Ajudar-vos-emos a encontrar as maçãs podres e a vencer as resistências para as separar das saudáveis. Porém, se vocês não se decidem de modo radical a estar do lado das crianças, das mães, das famílias, da sociedade civil, então têm razão a ter medo de nós, porque seremos os vossos piores inimigos. Porque nós, os jornalistas, queremos o bem comum.”
Ninguém tem dúvidas, na sociedade em que vivemos, sobre o lado que escolhemos: é o das vítimas, nunca o dos abusadores. Que os bispos não tenham dúvidas: não são os jornalistas quem mancha a imagem da Igreja. É a Igreja que mancha a sua própria imagem ao permitir que no seu seio os abusadores encontrem um refúgio seguro.
Saúdo os passos dados no passado recente – especialmente a criação da comissão independente – para mudar esse paradigma. Espero que a comissão continue a ter condições para ser verdadeiramente independente. Da minha parte, cá estarei para fazer perguntas e para exigir respostas.