
Cerimónia de acolhimento da JMJ. Foto: ©️ Arlindo Homem /JMJ Lisboa 2023
Uma das mais comoventes imagens da Jornada Mundial da Juventude que haveremos de reter na memória é a da multiplicidade de bandeiras dos mais diversos países, das mais familiares às mais desconhecidas, de países mais ou menos longínquos, ricos e pobres. Mais até do que o número de participantes, foi esta imagem de universalidade (que mostra como a mensagem do Evangelho chegou mesmo a todos os cantos da Terra, de um modo que só a ação de Deus pode explicar) que distinguiu este extraordinário evento. Estamos habituados a receber turistas de muitos países, mas não do Burundi, de El Salvador ou da Papua-Nova Guiné. Muitos destes peregrinos vieram à Europa pela primeira vez, não certamente com os seus próprios recursos, e compreende-se bem que não tenham consumido o que habitualmente consomem os turistas. De forma limitada – há que reconhecê-lo –, todos os povos estavam aqui representados («Virão adorar-Vos, Senhor, todos os povos da Terra» – diz o salmo 71).
Esta multiplicidade de povos e bandeiras refletia um clima de alegria, paz e fraternidade. Um grande contraste com o que se verifica quase sempre em jogos de futebol, em que a separação de claques se impõe como elementar medida de segurança. As autoridades policiais não estão habituadas a multidões tão ordeiras, que as aplaudiam em reconhecimento do seu trabalho. Num comboio sobrelotado e parado há mais de meia hora, com um calor tórrido, vi jovens que reagiam a essa situação com cânticos de alegria em várias línguas.
Estas imagens também impressionaram o Papa Francisco, que afirmou, na primeira audiência depois do seu regresso a Roma: «a JMJ mostrou a todos que outro mundo é possível: um mundo de irmãos e irmãs, onde as bandeiras de todos os povos flutuam juntas, lado a lado, sem ódio, sem medo, sem fechamentos, sem armas!».
Hesitei antes de decidir relatar um episódio que ensombra este maravilhoso quadro e com ele contrasta. Mas sinto que não posso deixar de o fazer, em homenagem à verdade e porque esse episódio não deixa de ser significativo, como sinal do caminho que ainda falta percorrer para alcançar a paz dos corações, mesmo no âmbito da Igreja.
Tive ocasião de conhecer uma jovem russa que trabalhou como voluntária da JMJ durante várias semanas, depois de ter ultrapassado grandes obstáculos para chegar a Portugal. Originária de uma região da Sibéria situada no extremo oriental da Rússia, foi tocada pelo testemunho de membros do movimento a que veio a aderir e que tinham deixado o conforto da Europa para levar o seu ideal de vida a essa tão longínqua e inóspita região. Como outros russos católicos, tem uma particular devoção a Nossa Senhora de Fátima, pelas referências desta à conversão da Rússia. Estava muito contente por ser “porta-bandeira” do seu país na cerimónia de acolhimento do Papa. Ouvi-a dizer que ela e os seus compatriotas traziam bandeiras da Rússia bastantes discretas, pensando que poderiam originar reações de hostilidade.
E assim veio a acontecer. Um grupo de peregrinos adolescentes ucranianos. num confronto com outro grupo de peregrinos russos, queimou a bandeira que essa jovem trazia consigo.
Sendo um facto isolado entre centenas de milhar de peregrinos, ele não anula a imagem que descrevi de início. Essa mesma jovem guarda uma grata recordação da cerimónia de apresentação das bandeiras de todos os países participantes, onde ela esteve ao lado da “porta-bandeira” da Ucrânia e ambas sorriram uma para a outra amigavelmente. Também vi fotos de peregrinos com bandeiras russa e norte-americana em alegre confraternização. Mas aquele outro episódio, que não posso ignorar ou ocultar, fingindo que não se verificou, provocou em mim grande tristeza.
Compreendo agora melhor que seria prematuro e artificial um encontro (que chegou a ser alvitrado) entre peregrinos ucranianos e russos durante a JMJ. As feridas provocadas pela guerra de agressão à Ucrânia ainda não sararam e o perdão e a reconciliação não podem ser impostos ou forçados; só têm sentido se forem livres e autênticos.
Mas a vontade dessa reconciliação não pode sair do nosso horizonte, antes de mais dentro da Igreja. Sempre a partir do pressuposto de que as pessoas e os povos não podem ser responsabilizados pelos crimes dos seus governos.
Foi essa reconciliação de povos que esteve na origem do historicamente inédito projeto da unidade europeia. A uma história marcada por séculos de conflitos entre nações, esse projeto pretendeu substituir uma outra história, de paz e solidariedade, no respeito pela democracia e pelos direitos humanos. Há que evitar hoje o regresso à sucessão de conflitos nacionalistas que caracterizou a Europa até ao fim da Segunda Guerra Mundial
Vem a propósito recordar o que disse o Papa Francisco no seu discurso no Centro Cultural de Belém, sobre o papel da Europa na promoção da paz, em especial na Ucrânia, em consonância com os valores que estiveram na raiz do projeto da unidade europeia:
“Na verdade, o mundo tem necessidade da Europa, da Europa verdadeira: precisa do seu papel de construtora de pontes e de pacificadora no Leste europeu, no Mediterrâneo, na África e no Médio Oriente. Assim poderá a Europa trazer, para o cenário internacional, a sua originalidade específica; vimo-la delineada no século passado quando, do crisol dos conflitos mundiais, fez saltar a centelha da reconciliação, tornando verdadeiro o sonho de se construir o amanhã juntamente com o inimigo de ontem, o sonho de abrir percursos de diálogo, percursos de inclusão, desenvolvendo uma diplomacia da paz que extinga os conflitos e acalme as tensões, capaz de captar o mais débil sinal de distensão e de o ler por entre as linhas mais distorcidas da realidade.
No oceano da história, estamos a navegar num momento tempestuoso e sente-se a falta de rotas corajosas de paz. Olhando com grande afeto para a Europa, no espírito de diálogo que a carateriza, apetece perguntar-lhe: Para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra na Ucrânia e com tantos conflitos que ensanguentam o mundo?”
O Papa apela a vias «corajosas» e «inovadoras». Apela à criatividade na busca dessas vias, porque não se trata de buscar uma “paz” a qualquer preço e há que superar um difícil dilema.
Por um lado, há que considerar que a verdadeira paz não significa a capitulação perante a agressão e a injustiça. Já o afirmava São João XXIII na encíclica Pacem in Terris: a paz assenta nos alicerces da verdade, da justiça, da caridade e da liberdade. Não se nega ao povo ucraniano o seu direito de legítima defesa (o Papa Francisco nunca o fez). E não serão aceitáveis condições de paz que representem uma forma de beneficiar o autor da agressão.
Por outro lado, não podemos resignar-nos à continuação imparável (sabe-se lá até quando…) do cenário de morte e destruição a que assistimos todos os dias: de perda de vidas humanas e de destruição de cidades e infraestruturas. Pensar que esse cenário só poderá terminar com a vitória incondicional da parte injustamente agredida, que a essas perdas deveremos resignar-nos, que não podemos aspirar a uma «paz sem vencedores, nem vencidos», é uma forma de desistência que o Papa Francisco e os amantes da paz não podem aceitar.
O apelo do Papa Francisco à Europa é, pois, contra esta desistência da busca da paz, busca para que são necessárias vias “corajosas” e “inovadoras”. Ele próprio não desistiu de o fazer através da diplomacia do Vaticano.
Com é habitual nestas ocasiões, quando nos despedimos da jovem russa de que falei no início, fizemos votos de nos voltarmos a ver algum dia. Mas, certamente, isso só poderá suceder depois do fim desta guerra e de ser derrubado este novo muro que (como outro no passado) está hoje a dividir a Europa.
Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz.