A Justiça como bem-aventurança
A justiça como virtude caiu em desuso; verificamos que o léxico cristão optou por outras terminologias como: “amor”, “misericórdia” ou “caridade”. A justiça parece ter ficado esquecida nos ensinamentos do judaísmo, que foram a formação e cultura de base do próprio Cristo. Talvez a atual linguagem cristã tenha tomado essa opção pela conotação negativa que a justiça parece ter assumido. Encaramos a justiça como a da lei de Talião, desarticulando-a das Bem-aventuranças e do mandamento de misericórdia constante na pregação de Jesus, e que aprofunda e aprimora a essência da Justiça. Por outro lado, ao pensar coloquialmente em justiça, somos assaltados pela redutora imagem de um pretenso nivelamento de estilos de vida. Na lógica cristã, o lugar da justiça é da maior importância. É uma virtude de compromisso que coloca a misericórdia em ação, fazendo-a passar de um sentimento a uma atuação concreta.
A imagem do justo foi completada pela do misericordioso. Misericórdia e justiça são, de facto, equivalentes. O que é usar de justiça? É restituir ao outro a dignidade fundamental que nele está impressa, a partir da sua existência. Fazer justiça não é acrescentar, é repor; não é dar, é restituir. A “opção preferencial pelos pobres” é um alicerce da ética cristã que se define como uma partida rumo ao encontro dos mais fragilizados. Há várias formas de pobreza, da material à pobreza da solidão, do desamparo ou da incapacidade de pôr os talentos a render… Tantas são as necessidades de quem está ao nosso lado e precisa que sejamos compassivos e ativos…
Para um cristão, o compromisso individual de cada um com o seguimento de Cristo deve traduzir-se em ações concretas de intervenção cívica e social, mas também nos mais ínfimos, e praticamente invisíveis, gestos do quotidiano. As Bem-aventuranças surgem como a lei de Cristo, que não é impositiva, antes se apresenta como um convite: “Felizes” ou “Bem-aventurados”. Esse convite, mais do que um apelo à retidão é um desafio a viver em plenitude.
O pontificado do Papa Francisco, e a sua ação enquanto arcebispo em Buenos Aires revelaram uma intensa preocupação social. A primeira viagem enquanto Papa, carregada de simbolismo, foi a visita à ilha de Lampedusa. Os sucessivos apelos ao combate à indiferença que reina no mundo ficarão seguramente consagrados como marcos indeléveis do seu pontificado. Francisco trabalha para criar uma Igreja desinstalada, um autêntico “hospital de campanha”. Assentou bem a premissa de que o nosso Deus é um Pai, infinitamente misericordioso, que a todos nos congrega como filhos amados e irmãos. Insistindo que ninguém fica excluído desse amor, pelo que ninguém se pode desvincular de um compromisso sério para com os outros. Ninguém se pode considerar substituível ou incapaz de ser melhor.
A grande questão com que todos ficamos é como é que, no concreto de vidas cada vez mais agitadas e onde os problemas do mundo nos parecem tão longínquos, podemos responder a esse apelo. Não tenhamos a ilusão de que mudaremos o mundo, mas não caiamos também no desânimo de que a nossa ação individual é insignificante. Essas duas tentações são os maiores travões à assunção de um compromisso. Não nos escondamos atrás delas.
A justiça implica um cuidado em preservar a dignidade original com que somos marcados, desenvolver os dons que tornam a nossa vida mais plena e enriquecem a dos outros. Não menos importante é cuidar de ser boa companhia, consolar um sofrimento que nos é confiado, procurar levar beleza aos que partilham a mesma estrada, tratar da própria saúde e ânimo. Poderíamos pedir, tal como o pão, que a beleza de cada dia nos seja dada. Resistir à cómoda tristeza que se instala lentamente e nos fecha. Porque a infelicidade é uma enorme tentação pelo conforto que apresenta. Desconfiar é mais cómodo do que ousar confiar, nos outros e na vida. Ter o atrevimento de prosseguir um objetivo há muito idealizado é imensamente mais arriscado do que o acomodamento ao cinzento do cotidiano.
Permitir-nos dar espaço à sensibilidade, saindo do estado de anestesia, são, por si só, o primeiro e mais significativo passo na mudança de um paradigma de vida. Os versos de Sophia de Mello Breyner descrevem de forma assertiva e simples o compromisso para com os outros: “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar.”
Quantas vezes fomos indiferentes ao ar pesaroso de um amigo? Quantas vezes ignorámos o desabafo de uma tristeza? Quantas vezes virámos a página do jornal que relatava a guerra?
Perante a resposta de Caim a Deus quando lhe diz: “Sou, porventura, guarda do meu irmão?” (Gén. 4, 9) deveríamos replicar: sim. Enquanto não nos sentirmos guardas dos nossos irmãos não seremos guardas da possibilidade de vida plena que nos está destinada.
Sofia Távora é estudante de Direito e voluntária no Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa do Hospital Dona Estefânia.
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