20 anos do novo regime legal

A lei da liberdade religiosa é boa e recomenda-se, mas ainda tem muito por concretizar

| 22 Jun 2021

Vinte anos depois, o que trouxe a Lei da Liberdade Religiosa (LLR), promulgada a 22 de Junho de 2001, faz nesta terça-feira precisamente duas décadas? Uma conferência na tarde do aniversário, em Lisboa (que pode ser acompanhada por transmissão digital), quando se completam 20 anos da lei, fará o ponto de situação e procurará debater o que falta fazer. O 7MARGENS antecipa argumentos.

Religiões. Eutanásia. Portugal

Representantes de várias confissões religiosas em Portugal, em 2018: a igualdade ficou mais plena com a lei do regime democrático para as religiões. Foto © Ecclesia

 

O mais importante é o próprio facto de haver uma lei, diz ao 7MARGENS António Calaim, presidente da Aliança Evangélica Portuguesa, que representa a segunda confissão mais significativa do país depois da católica. “Ter uma Lei da Liberdade Religiosa foi o reconhecimento de que a matéria é importante e representa algo mais para lá do que estabelece a Constituição, ao definir os princípios da igualdade, separação, cooperação e tolerância.”

Durante as décadas do Estado Novo, entre os anos 1930-1970, o regime mantivera as confissões minoritárias tuteladas. A Concordata com a Santa Sé, assinada em 1940, dava algumas benesses à Igreja Católica, mas mantinha-a também sob a autoridade última do Estado. Em 1971, uma nova lei mantinha um tom paternalista sobre as minorias e só com o advento da democracia, em 25 de Abril de 1974, os diferentes credos puderam respirar livremente, ainda que com muitos constrangimentos à sua acção.

O antropólogo Alfredo Teixeira, professor na Universidade Católica e que tem coordenado vários estudos sobre sociologia religiosa, sintetiza ao 7MARGENS: “A história da liberdade religiosa, em Portugal, não começa em Abril de 1974. Mas é importante reconhecer que a experiência de democratização política abriu a nossa sociedade aos processos de diversificação religiosa.”

A sociedade aberta permitida pela democracia tende a recompor-se também “a partir de dinâmicas de diferenciação e não a partir da reprodução de hegemonias”, acrescenta. “O aprofundamento jurídico da liberdade religiosa deve ser lido no quadro desta paisagem mais ampla de aprofundamento das liberdades e garantias”. Nesse sentido, diz ainda, a aprovação da LLR, em 2001, e a nova Concordata entre Portugal e a Santa Sé, de 2004, “enquanto instrumentos jurídicos basilares, podem ser interpretados como corolário do 25 Abril de 1974”.

Mesmo assim, a nova lei surge apenas 25 anos depois da data que marca a instauração da democracia. No primeiro governo liderado por António Guterres, o seu ministro da Justiça, José Vera Jardim, lança o processo. Onde não deixou de estar presente, uma história de infância, como o próprio contou ainda há dias e o 7MARGENS noticiou.

A nova lei, cujo principal redactor foi o conselheiro José Sousa e Brito, transpõe para o quadro religioso os valores democráticos: igualdade, separação, não confessionalidade do Estado e cooperação são os seus princípios basilares, ao mesmo tempo que estabelece um conjunto de direitos individuais – educação, objecção de consciência, assistência religiosa nas forças armadas e de segurança, hospitais e prisões, por exemplo.

 

O alargamento dos direitos colectivos

O bispo da Igreja Lusitana (Anglicana) com o Presidente da República (e, atrás, os presidente da Conferência Episcopal católica e da Aliança Evangélica) numa recente cerimónia inter-religiosa. Foto: Direitos reservados.

 

É, porém, no capítulo dos direitos colectivos que a diferença se torna maior: o Estado passa a reconhecer comunidades radicadas em Portugal, a possibilidade do ensino religioso nas escolas públicas e de tempo de antenas na rádio e televisão estatais também para as confissões minoritárias e determinados benefícios fiscais quando está em causa o serviço de culto.

Ao mesmo tempo, a lei 16/2001 prevê a possibilidade de uma dotação de 0,5% do IRS ser destinada por cada contribuinte a comunidades religiosas (uma medida que acabou por se estender também a instituições de solidariedade, associações e organizações) e também a possibilidade de acordos entre pessoas colectivas religiosas e o Estado.

Uma atitude que “pode ser descrita como politicamente activa na promoção de uma laicidade mediadora”, define Alfredo Teixeira, lembrando que a lei criou também a Comissão da Liberdade Religiosa (CLR), mas permitiu igualmente “singularidades” como o Gabinete de Assuntos Religiosos e Sociais Específicos, em Loures, ou o Religare – Estrutura de Missão para o Diálogo com as Religiões, no âmbito da Presidência do Conselho de Ministros.

O balanço é francamente positivo, considera António Calaim, citando o acesso aos meios de comunicação públicos, as aulas de Religião ou a assistência religiosa nos hospitais, prisões ou estruturas militares ou de segurança.

Fernando Soares Loja, advogado, que integra uma comunidade da Igreja Baptista e desde 2005 é vice-presidente da CLR, cita também a regulação da assistência religiosa nos hospitais, nos estabelecimentos prisionais e nas Forças Armadas como um dos adquiridos mais importantes. Mas, neste campo, há detalhes importantes, como o “maior cuidado quanto à dieta de reclusos que não podem, por razões religiosas, comer todos os alimentos que a população prisional em geral consome”. E conta uma história: um dia, foi chamado à pressa ao estabelecimento prisional da PJ em Lisboa porque tinha sido detido um judeu não português. “Queriam saber o que lhe podiam dar de comer. Pedi à Comunidade Israelita de Lisboa a lista dos alimentos proibidos…”

O respeito pelo dia de sábado, por exemplo no caso de alunos – que foi incentivado pela CLR junto de muitos professores –, e o reconhecimento civil do casamento religioso são outros exemplos dados por Soares Loja sobre os avanços conseguidos.

No novo regime legal, a maior flexibilização veio permitir que muitas comunidades deixassem de ser forçosamente estruturadas como associações – o que, por vezes, colocava em causa a sua identidade –, enquanto “a utilização para o culto de espaços destinados a outros fins passou a ser reconhecida como legítima, o que resolveu um problema sério, porque 90% dos prédios usados para o culto não têm licença de utilização para serviços”.

 

Espaços de culto ou garagens com ruído?

Uma cruz feita com Bíblias numa igreja evangélica: os espaços de culto são ainda, por vezes, partes de prédios habitacionais ou espaços comerciais ou industriais. Foto © Timóteo Cavaco, cedida pelo autor.

 

Aqui radica, no entanto, um dos problemas maiores, sentido sobretudo pelas comunidades e pequenas igrejas evangélicas que comprar ou arrendam, muitas vezes, “espaços destinados ao comércio, à indústria, a armazéns, a garagens”. António Calaim lembra que a LLR estabelece que, se a maioria dos condóminos de um prédio em propriedade horizontal se opuser, determinada fracção não pode ser utilizada para o culto – com o argumento do ruído ou da perturbação, por exemplo.

O ideal, diz o presidente da Aliança Evangélica, é construir edifícios de raiz, pois a questão do ruído permite ainda “uma certa arbitrariedade”. Mas isso exige também que, quando uma câmara licencia novas urbanizações, deveria prever também a possibilidade desses espaços. Até porque o problema, diz, não é apenas o do lugar de culto propriamente dito, mas também os acessos, estacionamento ou, até, a possibilidade de fazer funerais, que muitas vezes origina(va)m conflitos com condóminos quando feitos em fracções de prédios.

Outro aspecto onde ainda há falhas, nota Calaim, é na assistência religiosa em hospitais, prisões ou Forças Armadas (FA). “Continua a haver arbitrariedade e resistências”, mais notórias desde há mais de um ano, com a pandemia, diz António Calaim. Soares Loja acrescenta que, nas FA, já houve diligências do presidente da CLR “junto da tutela, mas sem resultados, apesar da simpatia do ministro”; enquanto em alguns hospitais se impede “o acesso de ministros do culto credenciados que pretendem prestar assistência religiosa a pacientes internados que pediram especificamente a presença de determinado assistente espiritual” ou aquele é obrigado a esperar pela hora da visita, “em prejuízo de pessoas da família ou amigos”.

Dificuldades são também alguns problemas como a cobrança de impostos como o IMT ou o IMI, com os serviços fiscais a interpretar de forma diferente as mesmas normais legais; ou a taxação do fornecimento de água e electricidade como espaços comerciais, aponta Calaim. Ou ainda, acrescenta Soares Loja, o desfavorecimento das comunidades religiosas em relação às IPSS, pela impossibilidade de isenção do Imposto de Selo e do Imposto Automóvel; ou pelo facto de alguns serviços de Finanças negarem a isenção de IMI quando os templos estão instalados em prédios destinados ao comércio ou à indústria, apesar de a LLR não admitir objecções desde que elas não existam por parte dos condóminos

Calaim dá ainda a sugestão que, de tempos a tempos (por exemplo, nas datas principais de cada credo), as confissões minoritárias poderiam ter um tempo de emissão mais alargado, que permitisse a transmissão de algum culto, à semelhança do que acontece com a missa católica.

Soares Loja faz outra pergunta: “Porque razão as empresas podem apoiar o desporto, a investigação científica, a cultura e a assistência social se for feita por IPSS, mas não o podem fazer se essa assistência for feita por comunidades religiosas na sua área territorial onde conhecem as necessidades de pessoas?” E recorda que a proposta de protocolo que chegou a ser apresentado pela Aliança Evangélica está pendente de análise, depois de ter ficado enredada em problemas burocráticos…

 

Uma conferência de balanço

José Vera Jardim, presidente da Comissão da Liberdade Religiosa. Foto © CLR

 

A conferência desta tarde em Lisboa, às 15h, é organizada pela Comissão da Liberdade Religiosa e pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM), e pode ser vista em directo através do canal YouTube do ACM (https://www.youtube.com/channel/UCN7iRGs60F7gxJ9I3OUhGJg), sem necessidade de inscrição prévia.

Na sessão de abertura estarão presentes o do Presidente da República, que fará uma intervenção, e a ministra da Justiça. O cardeal-patriarca e o antigo Presidente Jorge Sampaio enviarão uma mensagem.

Às 16h, Jónatas Machado, professor de Direito na Universidade de Coimbra, falará sobre a liberdade religiosa numa perspectiva histórica e internacional. A seguir, uma mesa-redonda debate a forma como nasceu a lei e os novos desafios que ela enfrenta, e terá a participação de José Sousa e Brito, coordenador da redacção da LLR, do constitucionalista Jorge Miranda e de André Folque, membro da CLR.

Às 17h45, haverá um debate com intervenientes de diferentes credos sobre diálogo inter-religioso. A sessão de encerramento contará com o presidente da CLR, José Vera Jardim e o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues.

 

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