
Retrato de Tolstoi. © Scanning Dmitry Makeev, scan date – 2020 year., Public domain, via Wikimedia Commons.
Nunca ninguém irá mudar o mundo, o mundo está em permanente mutação por si só e cada um de nós mudando com ele. A única coisa que podemos efetivamente mudar é a nossa visão e consciência do mesmo.
Li, há pouco, um livro que reúne correspondência entre Gandhi e Tolstoi; este último dirigia-se a Gandhi numa das cartas, alegando que a única permanência era a da controvérsia; escreveu: “Antigamente, o principal método de justificar o uso da violência e assim infringir a lei do amor era reivindicar um direito divino para os governantes: czares, sultões, rajás, xás e outros chefes de estado. Porém, quanto mais a humanidade vivia, mais fraca se tornava a crença nesse direito peculiar dado ao governante por Deus.”
Sabe-se hoje que é imoral subordinar os outros às suas vontades, mas temo que cada vez se saiba menos e que o ciclo esteja perto do ponto central da espiral. Atravessamos uma época em que, apesar de já não se crer em porta-vozes da divindade, crê-se cegamente em algo que nos parece tão nítido quando pareceu nítida a superioridade dos czares àquela época; parece-me que passamos hoje, por um processo semelhante; mas também é verdade, e como escreve Tolstoi na mesma carta, que “quando o velho engodo diminui, a única preocupação desses homens — os da autoridade sobrenatural e designada por Deus — passa a ser inventar uma nova enganação que torne possível manter o povo em servidão a um número limitado de governantes, como fez a antecessora.”
Sim, Tolstoi desenvolveu este pensamento há dois séculos, sob a expansão do Império Russo, mas se atentarmos às semelhanças entre o presente século e o XIX, as estruturas sociais nunca chegam a alcançar com plenitude as promessas pós-catastróficas. Vemos ou não, atualmente, apoiantes numerosos e plenamente convictos dos supostos irrefutáveis? Até mesmo aqueles que por ele sofrem opressão.
A crença na ciência veio, nessa época, iniciar a ocupação do espaço que pertencia à crença religiosa; no entanto, as justificativas de ambas, se encaixam nos mesmos eixos e a justificativa milenar mais difundida — tanto de uma como de outra crença — continua a ser a da supressão de alguns em prol da proteção da maioria. “A única diferença nessa justificação, pela pseudociência consiste no facto de que ela agora dá uma resposta distinta daquela dada pela religião ao porquê de algumas pessoas não terem o direito de decidir contra quem a violência pode e deve ser usada”, diz, ainda, Tolstoi, «A “ciência” afirma que essas decisões representam a vontade do povo, que, sob uma forma constitucional de governo, deve encontrar expressão em todas as decisões e acções daqueles que estão no comando do momento.»
A mim, parece-me que estas justificativas não são senão a cobarde necessidade daqueles que ocupam os postos de privilégio, à semelhança dos que cegamente apoiavam a Imaculada Concepção. Os níveis de propaganda das conveniências em nada alteraram com o passar dos séculos.

Correspondência entre Tolstoi e Gandhi. Foto © Tolstoy, Public domain, via Wikimedia Commons.
O escritor termina a carta dizendo:” A infeliz maioria dos homens está tão deslumbrada com a pompa com a qual essas “verdades científicas” são apresentadas que, sob essa nova influência, aceita essas idiotices científicas como verdade sagrada, assim como anteriormente aceitava as justificativas pseudo religiosas. E essa infeliz maioria continua a se submeter aos atuais detentores do poder, que são tão cruéis, mas agora mais numerosos que antes.”
A mim, parece-me, que estamos novamente imersos na cilada das crenças irrefutáveis; olho à volta e vejo gente consumida pela convicção diminuindo a vida à razão. Não é dual estarmos tão convictos de opinião própria – obviamente que causada por factores externos sobre os quais raramente refletimos – na época em que a humanidade menos pensa?
Não é controverso estarmos tão cheios de razão, cada um por si, quando não tiramos sequer dez minutos diários para verdadeira reflexão?
Creio que nos perdemos — calhou-nos a nós, o reinício da espiral, o fim do ciclo — por nos ser imposta a opinião como se de a maior das verdades se tratasse; foi-nos passado para os ombros o peso da divindade e cremo-nos Deuses, mas Deuses esquecidos de amar, de escutar, de olhar, de entender. Como disse inicialmente, o mundo muda todos os dias e não cabe a ninguém mudá-lo; fenómenos incompreensíveis atravessam séculos e gerações; a mim, preocupa-me muito mais a falta destes quatro factores nas nossas vidas, do que propriamente, de que lado está a razão. A razão também poderia ser leve, se a gente quisesse, e aliar-se à virtude da compaixão.
Ana Sofia Brito é performer e artista de rua por opção, embora também mantenha a arte de palco; frequentou o Chapitô e estudou teatro físico na Moveo, em Barcelona.