A publicação de dois volumes de Contos e Lendas Transmontanos (ed. LeYa), no final de 2020, foi o culminar de um projeto iniciado em 2017 e que consistiu na recolha exaustiva de contos e lendas dos concelhos de Bragança e Vinhais, concretizada na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), e de que resultou o resgate de 99 narrações da tradição oral daqueles dois concelhos.
Desenvolvido em parceria com a Direção Regional de Cultura do Norte, as comunidades escolares dos dois municípios e a Academia Ibérica da Máscara, o projeto selecionou os dois concelhos, por serem considerados os mais ricos do país em património cultural imaterial vivo. Os contos foram também interpretados graficamente pelas crianças do 1º e 2º ciclos do ensino básico das escolas de Bragança e Vinhais. A edição tem um prefácio do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

As capas dois volumes publicados de Contos e Lendas Transmontanos.
A propósito da recolha, compilação e publicação de alguns contos e lendas do concelho de Bragança, todos eles belíssimos e inspiradores, resolvi escrever sobre um deles (A Máscara de Ouro), por três razões principais: a primeira razão prende-se com o facto de unir a memória e o território, na figura do Abade de Baçal, patrono do meu Agrupamento de Escolas; uma segunda razão deve-se ao facto de ser um conto que faz pedagogia do simbolismo dos ritos de passagem; e a terceira porque, numa abordagem metafórica, nele subjaz a importância, tão atual e tão oportuna, do uso e simbolismo da máscara.
A toponímia ligada aos patronos das escolas e agrupamentos de escolas é, no meu entender, um grande e precioso motivo para conhecermos mulheres e homens que, pelo que fizeram e pelo que foram, mostraram ser credores do nosso interesse e admiração. Lembrá-los, enquanto exercício de memória, é reatualizar os seus feitos e aprender com eles as maneiras de habitarmos e tornarmos este mundo cada vez melhor; o Abade de Baçal é, seguramente, um desses exemplos.
Os ritos de passagem, a que o conto faz alusão, têm sido, desde sempre, a expressão comunitária de integração na idade adulta, e por via disso, na assimilação dos valores de plena cidadania. Pontuam o passar dos tempos e fazem memória comunitária das gerações naquilo que foi, que é e que será. Tornam a vida compreensível e plausível. Os ritos de passagem remetem para o fim e o recomeço e, na sua carga simbólica, transportam para o sagrado e o transcendente, marcando sempre a entrada numa nova vida. Rompem e marcam um corte no quotidiano, são um momento extraordinário na vida de cada um, pelo caráter único, festivo e fundamental. A memória destes ritos, faz a tradição, sem a qual não há corrente que ligue cada um de nós ao todo que nos rodeia.
Qualquer que seja o costume ancestral, dos sacramentos de iniciação cristã aos bar e bat mitzvah judeus (rituais solenes de assunção do vínculo filial e reconhecimento da aliança no espaço sagrado religioso), aos atos de coragem física das tribos africanas, passando pelos bailes debutantes da aristocracia e burguesia europeias (entrada na sociedade) ou viajando ao costume genuinamente transmontano da Festa dos Rapazes, desde sempre estes ritos tiveram uma extraordinária carga simbólica, envolvida num cerimonial grandioso e sublime.
Muitos desses ritos de passagem estabelecem uma simbiose profunda com a própria criação, num gesto que apela à contemplação e à gratidão, conferindo a cada um dos elementos uma função mediadora no espaço sagrado, como acontece com a água, elemento fundamental no conto: além da sua importância profunda no ato de purificação, torna-se o elo de ligação ao espaço interdito e regenerador. A fonte foi sempre um lugar ritualizado, desde o banho purificador à eternidade dada pela água sempre nova e sempre outra. A água une, vivifica e transforma.
A viagem a este conto, confronta-nos com um outro elemento de elevada importância simbólica: a máscara. O uso da máscara imprime ao rito o caráter misterioso e interdito. A máscara esconde ao mesmo tempo que revela. Por detrás da máscara mantemos a nossa individualidade e a nossa interioridade. Somos nós e mais ninguém. Talvez por isso o cristianismo tenha encontrado neste elemento o simbolismo supremo para o aprofundamento da noção de pessoa. Vivemos o tempo da máscara, porventura para nos fazer refletir que, mais do que nunca, devemos viver o tempo do “ser pessoa” (em todo o seu mistério, dignidade e transcendência).
Todos vivenciámos, nestes dias tão peculiares, a importância do olhar, agora feito protagonista. Estando a expressão facial escondida, o olhar assume-se, verdadeiramente, como o espelho da alma, porque não dissimula, não mente, mostrando com verdade o nosso ser e todo o nosso sentir. Com a máscara somos, paradoxalmente, mais verdadeiros e mais humanos, porque mostramos verdadeiramente quem somos.
Dina Pinto é professora de Educação Moral e Religiosa Católica no Agrupamento de Escolas Abade de Baçal, de Bragança.