
Manifestação em Lisboa pela paz na Ucrânia, diante da Embaixada da Rússia, domingo, 27 de Fevereiro 2022. “Poderão as ações não violentas garantir com êxito a paz e a justiça que procuram?” Foto © António Marujo/7MARGENS
Um cristão deve defender a não violência, por ela decorrer do Evangelho e de ser seguidor de Cristo ou há condições e situações que justificam a adoção da guerra em nome da justiça?
O simples colocar a pergunta, quando, na Europa, um país invadiu outro país, matou, violentou e destruiu poderá soar a provocação ou insensibilidade. Mas nada pode impedir de pensar e conversar sobre questões difíceis, do ponto de vista ético e moral, pelo menos para alertar que o caminho e o horizonte não podem ser a guerra, mas antes a paz.
Esse é o desafio que a revista La Civiltà Cattolica acaba de lançar, num artigo intitulado “Não violência e a tradição da guerra justa: rumo ao futuro”, da autoria do jesuíta David Hollenbach, professor da Universidade de Georgetown, em Washington DC, nos Estados Unidos da América.
Ninguém de bom senso defenderá a guerra como meio normalizado de responder a uma situação grave de injustiça, de abuso ou opressão. Porém, interroga o autor do artigo, “poderão as ações não violentas garantir com êxito a paz e a justiça que procuram? Poderão fazê-lo em todas as circunstâncias? Ou será que o recurso à força é, por vezes, lamentavelmente necessário para obter justiça de uma forma eficaz?”.
No fim de contas, está sempre a interrogação: é a “prevenção não violenta da força letal” que deve prevalecer ou deve ter prioridade “o esforço para superar o abuso e a opressão”? E será que, para os cristãos, a Bíblia ajuda a clarificar isto?
Todos recordamos o mandamento “não matarás”, no Antigo Testamento, e a declaração de que são “bem-aventurados os pacificadores”, no Sermão da Montanha. Jesus pôs, de resto, a fasquia bem alta ao apelar ao amor aos inimigos e ele próprio, quando torturado e condenado à morte na cruz, condenou o discípulo Pedro por desembainhar a espada.
Ao mesmo tempo, “a mensagem bíblica desafia os cristãos a trabalharem para a promoção da justiça”. Desde o Êxodo que Deus se compadeceu da exploração e injustiça do seu povo e se comprometeu a libertá-lo da opressão.
A inspiração dos Papas
O professor jesuíta convoca também as conclusões de uma conferência internacional do movimento católico internacional pela paz, Pax Christi, realizada em Roma em 2016, que defendeu que um compromisso firme com a não violência deveria substituir a tradição da guerra justa mantida pelo catolicismo desde os tempos de Santo Agostinho.
Em alternativa, aquela organização entendeu que se devia, na esteira do testemunho dado por Jesus, investir na prioridade à “promoção de uma espiritualidade e prática de não-violência ativa” e à formação e treino das comunidades católicas “em práticas não-violentas eficazes”.
A Pax Christi dizia-se inspirada pelo magistério de alguns papas recentes: João XXIII que, a propósito do perigo nuclear, sublinhou, na encíclica Pacem in Terris, que “já não faz sentido sustentar que a guerra é um instrumento adequado para reparar a violação da justiça”; de João Paulo II, que afirmou que o verdadeiro caminho da paz “nunca passa pela violência e sempre pelo diálogo”; e de Francisco que, na Fratelli Tutti, invocou a guerra como uma não-solução, porquanto “os seus riscos serão provavelmente sempre maiores do que os seus supostos benefícios”. O atual Papa não fechou completamente a porta à possibilidade de uma ‘guerra justa’, mas considerou ser “muito difícil, hoje em dia, invocar os critérios racionais elaborados nos séculos passados” para falar desse cenário.
O articulista de La Civiltà Cattolica, revista dos jesuítas italianos, apresenta alguns argumentos de estudiosos que consideraram que a posição da Pax Christi foi “seletiva” na leitura dos argumentos invocados, entendendo que ela “não deu suficiente atenção aos casos em que a força é necessária para a defesa efetiva das pessoas contra injustiças graves”.
Segundo esses especialistas, o movimento “estabelece uma dicotomia equivocada entre o compromisso com a não-violência e a insistência da tradição da guerra justa de que a força deve promover o tipo de paz que se baseia na justiça e que deve ser utilizada apenas como último recurso, quando outros meios para uma paz justa tiverem sido esgotados”.
Campanhas não violentas bem sucedidas
A par desta linha de reflexão, David Hollenbach chama a atenção para processos de luta não violenta, ocorridos em países de vários continentes, desde os anos 40 do século passado, que mostraram que este tipo de ação “pode ser bastante eficaz para resistir à opressão e garantir a justiça”. Foi o caso da luta liderada por Gandhi, na Índia, contra o colonialismo britânico; o movimento negro pelos seus direitos cívicos, nos Estados Unidos da América; o movimento do “poder popular” nas Filipinas, nos anos 80; as lutas dos trabalhadores na Polónia, que iniciaram a queda do regime soviético; ou o movimento contra o apartheid, na África do Sul, em meados dos anos 90.
Estudos empíricos recentes, referenciados no texto, evidenciaram que “nos movimentos internos contra a injustiça de governos opressores, as campanhas não violentas têm tido mais sucesso do que as lutas que recorreram a meios violentos”. O que reforçaria uma ideia, que é também do Papa Francisco, de que é relevante o “compromisso com a não violência na busca da justiça”, e que tal compromisso está longe de ser “ingénuo” ou “politicamente irrealista”, como por vezes se pretende.
Fundado em S. Tomás de Aquino, o professor Hollenbach acaba a concluir que o que tem vindo a defender o atual Papa, na linha do que, em tempos, defenderam também os bispos dos EUA, é que “a não-violência e a ética da guerra justa podem ser vistas como tendo uma relação complementar entre si”.
“Se seguirmos este ponto de vista, torna-se claro que o Evangelho e o respeito pela vida humana desafiam os cristãos a procurar a justiça de forma não violenta. E se a justiça não puder ser efetivamente assegurada através de meios não violentos, as normas da guerra justa devem ser aplicadas com grande cautela”.