
“(…) às tantas agradeço o volume da música porque é da maneira que ninguém mete conversa – gosto de conversar, mas o barulho da noite rouba-me a paciência para conhecer gente.” Foto © Foundry Co / Pixabay
A noite é dia para tanta gente; até para mim, amante de manhãs cedo e despertares preguiçosos.
Mas foi a madrugada que me escolheu a profissão; as paredes negras, as luzes de fundo a desmentir o escuro das pistas, o fumo a fingir-se de nuvem como que para esconder quem dança mal, e a música alta, ah… altíssima como se de um bando de surdos se tratasse, em plena pista.
Danço sob o transe que é tudo isso; as pessoas aplaudem, gostam e admiram-se. O álcool ajuda na boa impressão que causo ao dançar entre as luzes, acompanhada por bolas, bastões, correntes, etcétera. Depois peço mais um Gin e sento-me no canto do bar, às tantas agradeço o volume da música porque é da maneira que ninguém mete conversa – gosto de conversar, mas o barulho da noite rouba-me a paciência para conhecer gente.
Por isso estou sozinha na mesa do canto, de admiração posta na cabine do Dj, os fones mal colocados como se tivessem a capacidade de escutar uma música diferente em cada tímpano, enquanto a cabeça balança e os dedos bailam sobre a imensidão confusa dos botões.
Termino o gin, olho o palco na frente da cabine, procuro a adrenalina necessária para mais uma sessão. Fecho os olhos e imagino que sou uma marioneta na mão do DJ – não gosto da música, mas é como se gostasse.
Não sei se gosto daquilo tudo, mas é como se gostasse. Os dançantes querem mais, em vão, o bar acende a luz, tudo acaba.
Depois chego a casa – feliz por não ter apanhado nenhuma operação Stop a caminho – e são cinco da manhã; a água do banho está quente e imagino que a adrenalina me escorre em jato pelas pernas abaixo rumo ao ralo; percebo que estou bêbeda e que trouxe comigo o volume da música dentro da cabeça. Olho a janela, o sol vai aparecer não tarda nada, o mar quieto vem esbranquiçar a areia no confronto com a praia, e adormece-me o barulho dentro da cabeça. Um homem passa na calçada, de cigarro aceso, deve ser um dos meus; parece que ele não gosta, mas é como se gostasse.
Do lado esquerdo da cama, o meu amor dorme há muito; resta-me olhar o escuro do quarto à espera do sono. Enquanto isso, vou-me perguntando por que carga d’água é que há gente que teima em tornar as noites em hipotermia.
Estou bêbada e cansada, não gosto, mas é como se gostasse. Ligo baixinho o rádio da cabeceira, enfio um fone no ouvido que dorme virado para cima e a Lacrimosa, de Mozart, devolve-me à sobriedade. O coração, aliviado, reconhece o peito em que se instala. Adormeço. A cidade desperta em breve e eu vou perder a manhã cedo.
Ana Sofia Brito começou a trabalhar aos 16 anos em teatro e espetáculos de rua; Depois de dois anos na Universidade de Coimbra estudou teatro, teatro físico e circo em Barcelona, Lisboa e Rio de Janeiro, onde actualmente estuda Letras. Autora dos livros “Em breve, meu amor” e ” O Homem do trator”.