“O conhecimento mais divino de Deus é o que se alcança pela ignorância.”
(Pseudo-Dionísio Areopagita)
“Débil e miserável, ergue o teu olhar e repara no que és (…) nunca te julgues nem mais santo nem melhor; antes mais desgraçado e maldito.”
No Prólogo, o Autor anónimo desta obra enumera quem não deve ler o livro: “os bajuladores, os tagarelas carnais, os linguareiros, os detractores, os que espalham boatos, e toda a espécie de críticos e de curiosos”. Exceptuam-se “os activos (…) tocados pelo espírito de Deus”.
Antes de se aplicar ao “trabalho” da contemplação, a pessoa deverá “seguir os preceitos da Igreja e ser aconselhada por um director espiritual: (…) se alguém pretender chegar à contemplação sem antes passar muitas vezes por doces meditações sobre a própria miséria, sobre a Paixão, sobre a bondade, a grande benevolência e a dignidade de Deus, cometerá certamente um erro e falhará no seu propósito. (…) Deus me livre de separar o que Ele uniu, ou seja, o corpo e o espírito. Deus quer que O sirvamos de corpo e alma, como é nossa obrigação. (…) Vida activa e contemplativa praticam-se mutuamente. A primeira são as práticas da caridade e da misericórdia”; a segunda são “as meditações espirituais salutares”. “Busquemos a Deus de todo o coração.”
O autor pede ao praticante da contemplação que louve Deus em silêncio, “no próprio ser nu de Deus” (Nota do Tradutor: “Deus desprovido de imagens e conceitos”) e que siga “fervorosamente o impulso humilde” do seu coração.
Se o “impulso” para praticar a contemplação é frequente, “então poderás dedicar-te à contemplação”. Interessa que a “chamazinha” não esmoreça: “os desejos santos aumentam com o afastamento; mas se com este diminuem, nunca foram desejos santos” (S.Gregório).
Quem inicia esta prática encontra “escuridão”, como que “uma nuvem de desconhecimento”, isto é, “nuvem de não-saber”, “de ignorância entre ti e o teu Deus”. Citando Lino Moreira, O.S.B. (baseando-se nesta obra e noutras congéneres, na conferência proferida pelo tradutor no decurso da XXXI Semana de Estudos Monásticos, Salamanca, 2007), o praticante deverá permanecer na escuridão, “o mais que puderes, clamando sempre por Aquele que amas. (…) Assim como tal nuvem se encontra em cima, entre ti e o teu Deus, assim deves colocar em baixo uma nuvem de esquecimento, entre ti e todos os seres criados. (…) Numa palavra, todas as coisas se devem ocultar sob a nuvem do esquecimento. O contemplativo deve, pois, renunciar a todo o pensamento analítico, mesmo aquele que tenha Deus por objecto.” Diz o anónimo: “…Tudo aquilo em que pensas está por cima de ti, no momento de o pensares, interpondo-se entre ti e o teu Deus, e assim tu estás longe d’Ele na mesma proporção em que houver na tua mente alguma coisa mais para além d’Ele.”
Se se continua a praticar, “é Deus” que “incita, é a sua Graça” e não o esforço intelectual do praticante.
É natural que os pensamentos venham à tona durante a prática – sobretudo no início. Por isso é importante a humildade, a paciência, a insistência. Para os afastar, o autor anónimo diz para se murmurar com os lábios ou só com o pensamento uma pequeníssima palavra: “Deus, Amor”, por exemplo, “com muito fervor e humildade” e lentamente se regressará à concentração. “Prende esta palavra ao coração (…) é o teu escudo, a tua lança, na paz e na guerra”. Pouco a pouco, “ligando-te a Ele pelo amor e pela fé”, repousar-se-á facilmente. Mas se mesmo assim não se conseguir, “cai prostrado diante deles [pensamentos] como pobre cobarde vencido em batalha.” Entregar-se a Deus, ter consciência da nossa “miserável condição”, é fundamental. Então poderá acontecer que Deus envie ao praticante “um raio de luz que trespasse a nuvem do não-saber interposta entre tu e Ele. Mas quanto a isto, o autor “não ousa pronunciar-se”.
“Cuidado com o orgulho!”. Deus é que labora, não o praticante. A alguns é concedido mais rápido do que a outros, “furar” um pouco a nuvem, mas Deus é que sabe. “O amor casto são as consolações – doces sentimentos e lágrimas.”. “Mas só Ele é que sabe, não eu”, repete o autor.
“Esforça-te, pois, por laborar no nada… Rejeita os teus sentidos externos. (…) Aplica-te ao trabalho de que falo, sem pausa nem discrição… liberta-te sobretudo da consciência de ti mesmo. Todavia, sem uma graça muito especial concedida por Deus e sem capacidade para receber essa graça, nunca chegarás a destruir a consciência de ti mesmo.”
Citando novamente Lino Moreira, na conferência já referida: “Mas em que consiste esse esforço? (…) calcar aos pés a memória de todas as criaturas de Deus, mantendo-as sob a nuvem do esquecimento. (…) Podemos concluir, então, que na óptica do seu autor, a contemplação é perfeito esquecimento de si e perfeita caridade. Com efeito, ao chegar aos mais altos cumes da contemplação, o orante já nem sequer está consciente da sua própria essência individual e a sua vontade encontra-se inteiramente livre, para que Deus suscite nela uma cadeia ininterrupta de impulsos de amor. Tais impulsos, por seu lado, constituem a mais perfeita forma de caridade, pois em cada um deles o contemplativo nada mais faz do que amar a Deus por Ele mesmo, sobre todas as criaturas, e amar o próximo como a si mesmo, por causa de Deus.”
Segundo o tradutor, que tenho vindo a citar, a “discrição é a via para se chegar à contemplação. (…) em sentido espiritual, [aquela] é o juízo da razão a respeito do bem e do mal. (…) Existem na alma vários afectos: amor e ódio, alegria e tristeza (…) a discrição – como diz Cassiano – é a geradora, a guarda e a moderadora de todas as virtudes”, pois é ela que transforma os afectos em virtudes e os faz permanecer como tais. “Para alcançar a discrição, duas coisas são necessárias: (…) praticar durante muito tempo cada uma das virtudes (…) e por outro, submeter-se à direcção espiritual. (…) A [discrição] é uma espada afiada que serve para abater os maus impulsos (…) e para isso é necessário discernir a origem dos pensamentos”. Ou seja, analisar se estes são inspirados por Deus ou pelo “espírito do mal”. “(…) À medida que a alma vai triunfando dos maus impulsos, que tem origem nos pensamentos, o fruto que se obtém é o auto-conhecimento.” Por isso se diz que “a discrição é a via para chegar à contemplação, uma vez que é pelo conhecimento de si mesmo que o homem chega ao conhecimento de Deus.”.
O que aqui fica escrito, por mim, é muito incompleto e é fundamental ler toda a obra com muita atenção. O autor da Nuvem do Não-Saber aconselha a ler o livro várias vezes, aos que se interessarem pelo seu conteúdo: “Quanto mais o leres, melhor o compreenderás”. Siga-se, pois, este conselho.
No Prólogo, escreve-se que esta obra não deve ser lida nem transcrita a ninguém. Espero que o autor me perdoe. Os meus agradecimentos ao tradutor, Lino Moreira, monge da Ordem de São Bento (O.S.B.) que muito me elucidou, através da conferência citada, acerca desta obra complexa.
A Nuvem do Não-Saber
(Autor anónimo, inglês, dos fins do séc. XIV)
Tradução e notas de Lino Moreira, O.S.B.
Ed. Documenta, 192 pág.