
“O mal parece existir no nosso mundo, apenas porque o bem não está garantido.” Foto: Furnas, São Miguel (Açores) © António José Paulino.
De onde vem o mal, se só a alma é real? De onde vem o mal, se só o Ser é real? O mal parece existir no nosso mundo, apenas porque o bem não está garantido. Quer dizer, no plano humano, o bem exige um luta e conquista permanentes. O nosso mundo, o mundo humano, o mundo que é a existência humana em projeto, está incompleto, inacabado como o próprio ser humano. Mas o sentido é o bem, é sempre essa, em última análise, a intenção, a finalidade do agir humano – sempre um certo bem, como diria Aristóteles. Porque só o bem é real, só o bem é absoluto, fim em si próprio.
O mal será, no máximo, aguilhão para o bem (nunca meio), mas nunca fim em si mesmo. O bem é ser, aquilo que é, natureza e destino do universo (no sentido de totalidade do real ou Todo). O facto de tomarmos consciência do chamado “mal radical”, como por exemplo o Holocausto, paradigma moderno do “mal absoluto”, revela precisamente o cárater hiperproblemático do “mal radical” para o espírito humano. Somos levados à pergunta radical: “como foi possível?”, precisamente porque só o bem nos parece absoluto ou radical, nunca o mal.
No mais fundo das nossas consciências clamamos por justiça, exigimos justiça, para os inocentes de todas as guerras, holocaustos, catástrofes e doenças. Com Kant, queremos acreditar que esta exigência pungente do bem, da justiça em nós (reflexo do Bem Absoluto em nós radicado), implica logicamente uma resolução final, escatológica, em que a justiça necessariamente prevalecerá, no além ou no fim dos tempos. O mal não pode ter a última palavra. Pois, e precisamente evoluímos moralmente porque não acreditamos, nem podemos permitir, que o mal tenha a última palavra – eis a força do bem absoluto que nos motiva. Eis o que pode configurar-se como o sentido de uma vida inteira, de um indivíduo, de uma sociedade ou de uma civilização – a persecução do bem, do justo, do verdadeiro.
De facto, para a existência humana, não há outro bem mais passível de conferir brilho e sentido à vida do que a perseguição do bem, nada tão passível de gerar esperança. Muitas vezes – e tem sido assim ao longo da história do pensamento –, considerou-se o mal como a prova definitiva da inexistência de Deus. É esse o fundamento, para muitos, do ateísmo. Mas não se compreende que o entendimento e a consciência do mal dependem da consciência do bem, e uma consciência “radical” do mal depende, necessariamente, de um radical sentido do bem. E é a origem deste sentido que é preciso valorizar, mais do que o mal. Ora, negar a existência de Deus – i.e. do Absoluto Bem – por causa do mal, é tornar este num ídolo, quer dizer, atribuir-lhe um caráter absoluto que ele não possui.
É que, volto a sublinhar: não tomamos consciência do “mal radical” por causa do “mal radical”, mas por causa do bem – ele sim, de facto, radical – que constitui a nossa natureza e, por isso mesmo, constitui a nossa bitola moral. Tornar o mal num absoluto é gerar um antideus, precisamente quando se pretende refutar Deus. Assim, facilmente se esquece, precisamente, esse bem que se impõe radicalmente a partir de nós, que é o único a priori, e sem o qual a consciência do mal seria impossível. Ou seja, o mal, por mais radical que pareça, não pode refutar absolutamente o absoluto do bem supremo – muito pelo contrário, prova-o pela negativa, do mesmo modo que a existência da noite prova a existência da luz do dia, desde que reconheçamos que, sem o conhecimento da segunda, não chegaríamos ao conhecimento da primeira.
Reclamar contra Deus?

Podemos continuar a perguntar-nos: mas porque permitiu Deus a existência do mal? Podemos eternamente reclamar contra Ele por causa disso. Mas não podemos, ou não devemos, acusá-lo de ter permitido que o mal tivesse a última palavra. De facto, não tem, ou a vida humana não teria qualquer sentido. Se absolutizarmos o mal e virmos nisso um argumento para o niilismo e o pessimismo, não estamos a fazer mais, com efeito, do que colaborar com o mal. Estamos a torná-lo definitivo, estamos a dar-lhe a última palavra no sentido radical do mundo.
O mal pode chocar-nos, pode paralisar-nos e até tirar-nos toda a esperança. Mas nem por isso o bem foi suprimido da existência. Pelo contrário, ele está sempre presente, sempre em nós, não podemos escapar-lhe. É mais íntimo de nós do que nós de nós próprios. A palavra do bem será sempre a última.
Em síntese, e reformulando, a existência do mal não constitui refutação definitiva do bem. Tal seria absolutizar o mal, o que entraria em contradição com a suposta tentativa “agnóstica” ou “niilista” de refutar Deus, i.e., o bem como absoluto. Pelo contrário, a consciência pungente do mal, sobretudo do chamado “mal radical”, revela o enraizamento e a anterioridade profunda do bem em nós e na realidade. Só o bem surge como radical.
No entanto, é inegável que o mal surge como um mistério, um problema insolúvel, um espinho nas nossas carnes, especialmente se é radical – nomeadamente tudo o que é sofrimento ou morte de inocentes, especialmente crianças. Mesmo que não o concebamos como um absoluto, i.e., como uma realidade autónoma e autossubsistente, mas tão-só como ausência e negatividade – como de resto defendia Santo Agostinho –, tal só por si não o torna menos problemático. Precisamente porque o bem radical que nos habita nos impede de o justificar, de lhe encontrar um lugar coerente e não-contraditório na ordem geral do mundo.
Aliás, o bem exige que não justifiquemos o mal radical. E talvez isso mesmo esteja bem, quer dizer, talvez seja isso mesmo que uma ordem justa do mundo deva ser. É que tal possibilidade de justificação tiraria ao mal a sua problematicidade, normalizando-o, neutralizando assim a pulsão humana oposta, que é a da realização do bem. A evolução ética da humanidade, que depende em parte deste movimento de resistência e superação do mal, ficaria assim comprometida e estagnada. O mal não tem de ser explicado, apenas combatido. O mal não tem de ser compreendido, apenas superado (refiro-me ainda e sempre ao “mal radical”).
O mal (algo nos diz) não é natural. Ou noutras palavras, não é humano. Daí a radical e gritante problematicidade do inumano. E no entanto, ele obriga-nos a tomar consciência, a refletir, a despertar para a profundidade do humano. Se não se pode explicar o mal, contorná-lo ou simplesmente suprimi-lo, tem de se ir mais fundo, à própria raiz do humano, aprofundando a sua compreensão. É preciso resgatar a alma do Homem das profundezas (ou das alturas, que é o mesmo) onde se encontra. É que está em jogo nada mais nada menos do que o sentido último da existência.
A existência incompleta, inacabada da vida humana

Poderíamos até, racionalmente, conceber o mal como natural, ou pelo menos como integrando a coerência global da ordem do mundo. Mas este esforço estóico – em todos os sentidos – de adequação racional, embora possa ajudar a suportar o mal, sobretudo o mal pessoal, não nos liberta completamente do sentimento radical de injustiça e da perceção do inumano como inumano, i.e., como contradição não-natural. É, na verdade, um lenitivo muito fraco.
Metafisicamente, abstenhamo-nos pois de tentar explicar o mal, visto que não temos acesso ao ser metafísico (não, pelo menos, com um nível normal de consciência); e muito menos podemos esperar que a nossa lógica possa, só por si, abarcar toda a circulatura racional do universo, para assim desatar a contradição essencial. Procuremos antes explicar o bem, aprofundar a sua compreensão, ter uma visão dele cada vez mais clara, para que estejamos cada vez mais habilitados a cumprir o nosso destino de acordo com o infinito que nos habita. Se o mal não existe para ser explicado, e muito menos justificado, é porque o que é verdadeiramente essencial não é justificar o mal, mas antes tornar o bem cada vez mais explícito e real nas nossas existências. Porque esse constitui o caminho da nossa realização.
Porque quis Deus assim? Porque permite Ele o mal? Velhas questões às quais não sabemos responder, e provavelmente não temos de saber. A existência incompleta, inacabada da vida humana é feita da massa do sofrimento, mas também da alegria e da esperança. Quanto mais sabemos, quanto mais aprofundamos a consciência acerca do universo e do mistério radical que a própria existência constitui (não só pessoal, mas da totalidade do Ser), não é o mal que nos fascina, mas o bem, através da beleza inefável desse mistério.
Tudo o que é realmente belo, tudo o que nos espanta e assombra, tudo o que é sublime, nos fala de esperança. O mal, se absolutizado, conduz-nos, como problema, a um beco sem saída. Nele não há nenhuma esperança, nem nenhuma virtude, a não ser a de apontar para o verdadeiro problema e único mistério verdadeiramente radical, situado no limite da interrogação – o da própria existência e o seu sentido. Pela recondução a este problema realmente essencial e interessante para nós, há de facto lugar para a esperança que sempre emerge da contemplação de um Mistério radical.
Quando levamos a interrogação ao limite do possível, ao limite do próprio fundamento, razão e sentido do existir enquanto tal (i.e., do haver algo em vez de nada), a interrogação torna-se, de certa forma, também uma resposta. Precisamente porque, ao conferir mistério a todas as coisas, tornando-as problemáticas até ao limite do possível, nos diz que o dado, o “normal”, e, em boa verdade, tudo aquilo que julgamos absoluto embora seja meramente relativo, não têm nem podem ter a última palavra – daí um novo olhar sobre o mundo e uma esperança renovada.
O grande problema não é, enfim, o de justificar o mal, o que talvez não seja nem possível, nem desejável, como vimos, mas o de justificar a vida. Aqueles que julgam que podem declarar a morte de Deus por causa do mal “absoluto” deitam fora a possibilidade de justificar a vida. No final, resta-lhes ainda o mal como absoluto (apesar de terem declarado a morte do Absoluto por excelência), mas todo o bem lhes parece relativo. E assim, o mal vence. Só este lhes parece real, roubando-lhes a esperança de encontrar um bem positivo, afirmativo, para a vida.
A atitude que devemos seguir é esta: o mal é real, mas o bem é mais real ainda. O mal existe, mas o bem é a própria Existência. O mal não tem justificação, mas há Algo que, em absoluto, tudo justifica. Não é o mal que temos de compreender, mas a vida. O mal só exige uma resposta verdadeiramente humana – o bem. O bem, apesar de não explicar o mal e a sua origem, dá sentido à existência. Quanto maior e mais profundo for o bem, maior o sentido – e também maior a liberdade. Este é o verdadeiro destino da nossa evolução ética, indissociável da evolução da própria consciência, cada vez mais profunda e capaz de uma visão desimpedida do Bem.
Ruben Azevedo é professor e membro do Ginásio de Educação Da Vinci – Campo de Ourique (Lisboa).