
“Nós somos um dom de Deus para o mundo natural, e será do dom que a humanidade é para a natureza, e que a natureza é para a humanidade, que se abre um novo horizonte sobre o modo como compreendemos e vivemos esse relacionamento.” Foto © Manuel Barroso Parejo / Unsplash
No dia 1 de setembro começou o Tempo da Criação para diversas Igrejas Cristãs. Nesse dia, o Papa Francisco, o Patriarca Bartolomeu e o Arcebispo de Canterbury Justin assinaram uma “Mensagem Conjunta para a Protecção da Criação” (não existe – ainda – tradução em português). Talvez tenha passado despercebida, mas vale a pena ler. É uma mensagem que reconhece os desafios do momento que vivemos na nossa história e como não nos podemos desligar do desafio ecológico. É uma mensagem que reflecte sobre a importância da sustentabilidade e sobre o impacte que a crise climática tem para com os mais pobres, terminando com uma forte chamada de atenção para o imperativo da cooperação. Mas talvez as preocupações expressas na mensagem tenham na raiz alguns passos pouco claros e — creio — uma palavra em falta.
Uma ideia muito presente na globalidade do pensamento ecuménico é a da custódia da criação. A esta ideia segue-se a leitura do nosso papel de administradores em relação à criação, ou mesmo guardiões. A custódia de um filho implica darmos a nossa vida para o proteger, o que pode implicar grandes sacrifícios. Creio que essa é a leitura feita nesta mensagem em relação a sermos guardiões da criação. Mas, como cientista, o nosso planeta vive permanentemente em busca de um equilíbrio dinâmico. Por isso, se o nosso estilo de vida perturbar esse equilíbrio, o planeta reage. O problema está quando o efeito dessa reacção danifica o que é humano e, sobretudo, põe em risco a vida humana, em particular, a vida dos mais pobres e com menos recursos. É o planeta que está em risco e precisa de protecção? Ou é o mais pobre? Ou será o nosso estilo de vida que está em risco e temos dificuldade em abdicar da vida confortável que nos proporciona?
O conceito de custódia presente nesta mensagem define-se como «a responsabilidade individual e colectiva pelos dons que Deus nos deu». Mas o facto de considerarmos que o mundo natural nos foi dado precisa do movimento contrário para que a custódia possa ser entendida do ponto de vista relacional. Isto é, também nós somos um dom de Deus para o mundo natural, e será do dom que a humanidade é para a natureza, e que a natureza é para a humanidade, que se abre um novo horizonte sobre o modo como compreendemos e vivemos esse relacionamento. Relacionamento. Esta é a palavra que falta ao léxico ambientalista.
Em novembro, as nações irão «deliberar sobre o futuro do nosso planeta» no COP26, em Glasgow na Escócia, mas não será o nosso futuro neste planeta que estará em risco com o caminho que a natureza encontrar para recuperar o seu equilíbrio? E, ao contrário da percepção de que a natureza é delicada, a resiliência dos ecossistemas terrestres mostra como é sempre possível encontrar um novo equilíbrio. O problema poderá estar na incompatibilidade entre esse novo equilíbrio e a nossa vida, sendo os mais pobres os primeiros a sofrer. Deus não quer o nosso sofrimento, mas estaremos sensíveis à Sua voz a este respeito? Teremos a coragem e a preocupação de escolher o caminho mais difícil, mas que vitaliza o nosso relacionamento com a natureza? O caminho difícil exige a capacidade de reparar o que estiver danificado.
O consumismo leva-nos a comprar o que está estragado em vez de repararmos. Vale-me a esse respeito o testemunho do meu sogro. Admiro como a sua paciência em reparar o que está danificado leva tempo, mas fica reparado. Dizemos para nós próprios que não temos tempo para reparar, mas o preço pago pela nossa falta de paciência, e pelo pouco hábito de escolher o caminho difícil, é a razão subjacente do insucesso que há décadas nos leva a cada COP sempre com o mesmo discurso de que temos de mudar e agir. «Água mole em pedra dura tanto bate até que» … precisamos de uma nova abordagem.
A Plataforma de Acção Laudato Sí é uma iniciativa concreta do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral que pretende ajudar cada cristão ou pessoa de boa vontade a dar passos assertivos no cultivo de um estilo de vida mais ecológico. Um estilo de vida que reflicta uma nova narrativa relacional que queremos construir com a natureza. Uma narrativa que dê sentido à oração pelo cuidado do relacionamento com a casa comum.
Há quem discorde desta opinião, mas vejo ainda pouco promovida a palavra em falta — relacionamento com a criação — em muitos dos discursos de pessoas com o alcance mundial que têm, como é o caso do Papa. Se cuidarmos do relacionamento com a criação, cuidaremos da criação. Cuidar da criação sem cuidar do relacionamento parece-me insuficiente.
Quando nos relacionamos com uma pessoa, o primeiro passo é amá-la para a conhecer melhor. Esse amor faz-se com a presença e a curiosidade pelo outro tal qual é, não como eu o vejo. E se a nossa presença ostensiva é causa de escândalo, adaptamos o que vestimos e o modo como nos exprimimos. O Tempo da Criação é como uma segunda quaresma. Um caminho de conversão ecológica que nos devia aproximar do Pai através de um relacionamento mais profundo e concreto com a natureza. Todos (nós e o mundo natural) somos a família da criação que pela presença e estilo de vida sóbrio louvamos ao Pai. É nesse louvor que a crise se torna uma oportunidade.
Miguel Panão é professor no Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade de Coimbra; para acompanhar o que escreve pode subscrever a Newsletter Escritos.