Costumamos inaugurar os anos com desejos de paz, o primeiro dia do ano é o Dia Mundial da Paz. Falamos de paz como se ela dependesse apenas ou predominantemente de fatores externos. Raramente nos questionamos como é o ambiente de paz dentro de nós e como podemos ser construtores da paz, cada dia, cada hora, cada minuto que vivemos. Porque, na verdade, sem essa paz conquistada sobre nós mesmos jamais conseguiremos ser construtores de paz no mundo.

“…abrir-nos à alteridade a que somos sempre convocados, com os outros, com a criação e com Deus.” Foto Daniel Mingook Kim/Unsplash
A paz em nós depende apenas de nós e sem paz em nós não podemos dá-la a ninguém. Temos paz em nós ou corremos entre os conhecidos excessos: excesso de passado, que é depressão, excesso de presente, que é stress, e excesso de futuro, que é ansiedade?
Os excessos de passado, presente ou futuro convocam todas as nossas potências para a autorreferencialidade, são uma força centrífuga que nos posiciona no centro do mundo, como um turbilhão que faz desaparecer tudo em volta.
O primeiro sinal de falta de paz em nós é a incapacidade de alteridade, na sua tríplice dimensão: com os outros, com a criação e com Deus. Ao consentirmos nesses excessos perdemos a capacidade de ver a realidade com justeza e de a viver inteiramente.
Até podemos relacionar-nos, mas as relações não passam da superfície; até podemos viajar ou passear, mas somos cegos em relação ao entorno; até podemos achar que rezamos, mas não passamos de carpideiras que saem da oração mais carregadas do que à chegada.
Enredados sobre nós mesmos e convencidos que estamos a viver uma verdade intensa e incontornável, os nossos pesadelos, as mais das vezes, resumem-se a uma sensibilidade exacerbada (com a qual podemos aprender a lidar positivamente), a uma imaginação fértil (que podemos canalizar brilhantemente) e a um corrupio imparável (baseado na ilusão de sermos imprescindíveis).
Uma das vias para tentar superar esses males reside na inversão das premissas, forçando-nos (mesmo que nos custe) a abrir-nos à alteridade a que somos sempre convocados, com os outros, com a criação e com Deus.
Com os outros, estando disponíveis para a relação, treinando a empatia e a compaixão, de que todos precisamos.
Com a criação toda, talvez começando pela natureza que, sem inteligência nem vontade, nos sustenta e nos dá vida, só por existir: as árvores e todas as criaturas, o mar, o ar e tudo o que existe.
Com Deus, aprendendo a deixar-nos olhar por Ele e entregando-lhe tudo o que carregamos, para alívio certo das nossas almas cansadas.
Devagar, ir criando disponibilidade dentro de nós para vermos e sermos vistos, para amar.
A contemplação da vida que pulula à nossa volta coloca-nos no justo lugar de criaturas que recebem tudo, rigorosamente tudo. Permitamo-nos darmo-nos conta disso com calma reverente e grata. Tornemo-nos contemplativos sempre, não percamos a oportunidade de nos espantarmos com a vida, todos os dias, muitas vezes por dia.
“A minha paz vos deixo, a minha paz vos dou” (João 14, 27). Antes de partir, os desejos e o legado de Cristo foram a paz. A Paz Dele, que se autodefiniu como “manso e humilde de coração” (Mateus 11, 28): sem dores do passado, sem correrias do presente, sem ilusões do futuro. O Homem inteiro, o dom inteiro.
Da mesma forma, procuremos baixar a guarda (da nossa enorme importância) e escolhamos a melhor parte, pondo de lado o que não nos permite ESTAR (= ser inteiramente) no momento presente, que é também ele um dom, e um dom para os outros.
Dina Matos Ferreira é consultora e docente universitária