
“As armas nucleares têm uma potência de destruição indiscriminada e incontrolável que está para além de qualquer exigência de contenção”. Foto: Teste de armas nucleares, no Nevada, em 1951. © US Government (Governo dos EUA).
O Papa Francisco, em várias ocasiões, tem pugnado pela abolição total das armas nucleares, declarando a ilicitude moral do seu uso e até da sua posse. A Santa Sé foi dos primeiros aderentes ao Tratado das Nações Unidas sobre a abolição total dessas armas, o qual já recolheu a adesão do número suficiente de países para entrar em vigor (não recolheu, porém, a adesão de qualquer das potências nucleares, assim como dos países da OTAN, Organização do Tratado do Atlântico Norte). O observador permanente da Santa Sé junto das Nações Unidas qualificou esse Tratado como “profético”. Uma declaração conjunta dos presidentes da Conferência das Comissões Justiça e Paz europeias e da Comissão Justiça e Paz da Conferência Episcopal dos Estados Unidos também saudou o objetivo desse Tratado. Recentemente, um conjunto de mais de quarenta organizações católicas italianas (por iniciativa da Ação Católica Italiana, das Associações Católicas de Trabalhadores Italiano, da Pax Christi, da Comunidade João XXIII e do Movimento dos Focolares) lançou uma campanha em favor da adesão de Itália a esse Tratado.
Na verdade, as armas nucleares têm uma potência de destruição indiscriminada e incontrolável que está para além de qualquer exigência de contenção segundo critérios de legítima defesa ou de distinção entre combatentes agressores e não combatentes inocentes, o que torna o seu uso sempre moralmente condenável.
Há, porém, quem justifique a sua posse, e a simples ameaça do seu uso, como uma forma de dissuasão que evita guerras convencionais. A dissuasão mútua, o medo de consequências catastróficas que a ninguém beneficiariam e que representariam um suicídio coletivo, o “equilíbrio do terror”, terá evitado uma terceira guerra mundial durante o período da Guerra Fria. E a OTAN (de que fazem parte potências nucleares) continua a basear a sua política numa estratégia dissuasora desse tipo. Há, por isso, quem considere a abolição das armas nucleares uma utopia. E há quem recorde o velho adágio: se queres a paz, prepara a guerra.
Mas não é esta a verdadeira paz, sólida e duradoura, que não pode basear-se no medo e no terror, mas na confiança mútua. Há que dizer antes: se queres a paz, prepara a paz. Ainda antes da queda do comunismo, e quando a dissuasão nuclear evitava que este se expandisse, São João Paulo II declarou que essa dissuasão poderia ser moralmente aceitável apenas transitoriamente, que a ela não podíamos resignar-nos e que ela deveria dar lugar a um desarmamento multilateral.
Também nesse sentido se pronunciaram (com matizes um pouco diferentes entre as várias declarações) nos anos oitenta do século passado e a propósito da discussão sobre a instalação de mísseis nucleares em países da OTAN (em resposta à instalação de outros em países do Pacto de Varsóvia) os episcopados dos Estados Unidos, da França e da Alemanha.
Poderá falar-se, a este respeito, numa evolução da doutrina da Igreja; nunca deixou de ser condenado o uso de tais armas, mas, no que se refere à sua posse, essa doutrina evoluiu, de São João Paulo II ao Papa Francisco, de uma aceitação, enquanto instrumento de dissuasão, para uma condenação. No entanto, não se verifica uma verdadeira rutura. A simples posse de armas nucleares nunca foi, verdadeiramente, aprovada, mas provisoriamente tolerada, nunca foi encarada como uma situação definitiva, mas como etapa em direção à sua abolição total.
Depois da queda do comunismo e do perigo que ele representava, e ainda no pontificado de São João Paulo II, foi-se acentuando no magistério da Igreja, cada vez mais, a recusa da dissuasão nuclear. Assim, por exemplo, no discurso desse Papa de 2 de abril de 1995, aos bispos japoneses, onde se declara a insatisfação perante a situação atual e se apela à supressão de todas as armas nucleares. E também apontam nesse sentido as mensagens de Bento XVI para o Dia Mundial da Paz de 2006 e 2007.
Que a verdadeira paz e segurança não podem basear-se na dissuasão, revelam-no alguns episódios que merecem reflexão.
Quando a [ex-]primeira-ministra britânica Teresa May declarou que estava pronta a usar armas nucleares, porque se assim não fosse, o inimigo não levaria a sério a ameaça que elas representam, muitos ficaram chocados com essa sua afirmação. E outros consideraram que ela, uma pessoa com formação cristã, não estaria verdadeiramente a falar a sério. É em terríveis paradoxos deste tipo que assenta a dissuasão nuclear: como posso legitimamente ameaçar alguém com armas que não posso legitimamente usar?; como posso legitimamente possuir armas de que não posso legitimamente servir-me?
Por outro lado, quando, há algum tempo, assistimos a atitudes provocatórias do Governo norte-coreano, que pretendia demonstrar a sua capacidade de usar armas nucleares, e as reações violentamente ameaçadoras do [então] Presidente norte-americano a tais provocações, essas atitudes e reações também nos fazem pensar no risco, sempre presente, de que políticos a quem falte alguma sensatez (e nenhum dos dois políticos a que me refiro pode ser considerado modelo de sensatez) possam mesmo usar essas armas. A qualquer momento, por uma decisão imponderada e irrefletida, ou até por um erro de análise ou previsão, o “equilíbrio do terror” pode tornar-se “desequilíbrio do terror”.

“Como proclama o Papa Francisco na sua encíclica Fratelli Tutti, a verdadeira paz não pode assentar na dissuasão, no medo e nas ameaças de destruição mútua, que só criam uma falsa segurança e a desconfiança mútua”. Foto: Papa Francisco no voo de regresso do Iraque para Roma, em Março 2021. @ Javier Martínez Brocal (vídeo conta Twitter).
Na verdade, como proclama o Papa Francisco na sua encíclica Fratelli tutti, a verdadeira paz não pode assentar na dissuasão, no medo e nas ameaças de destruição mútua, que só criam uma falsa segurança e a desconfiança mútua. Afirma o Papa nessa encíclica (nº 262):
«Devemos perguntar-nos também quanto seja sustentável um equilíbrio baseado no medo, quando de facto ele tende a aumentar o temor e a ameaçar as relações de confiança entre os povos. A paz e a estabilidade internacionais não podem ser fundadas num falso sentido de segurança, na ameaça de uma destruição recíproca ou de um aniquilamento total, na manutenção de um equilíbrio de poder. Em tal contexto, o objetivo final da eliminação total das armas nucleares torna-se um desafio mas também um imperativo moral e humanitário. A crescente interdependência e a globalização significam que a resposta que se der à ameaça de armas nucleares deve ser coletiva e planeada, baseada na confiança recíproca, que só pode ser construída através do diálogo sinceramente dirigido para o bem comum e não para a tutela de interesses velados ou particulares. E, com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo mundial, para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim de que os seus habitantes não recorram a soluções violentas ou enganadoras, nem precisem de abandonar os seus países à procura duma vida mais digna».
Depois do fim da Guerra Fria, seria de esperar, ao menos, uma redução global do armamento nuclear. Mas não é isso que se tem verificado. O Tratado das Nações Unidas de abolição das armas nucleares é, na verdade, um sinal “profético” que aponta o caminho da paz autêntica, baseada no respeito e na confiança mútuos, na fraternidade e na justiça. Para além da sua eficácia no curto prazo (limitada enquanto ele não for assinado por alguma potência nuclear), este Tratado serve para reforçar na opinião pública internacional a ideia de que deve ser esse o rumo a seguir, o da paz autêntica. E esta força, da sociedade civil internacional, há de chegar, mais tarde ou mais cedo, aos governos.
A respeito da questão da eventual adesão de Portugal a esse Tratado, que foi já afastada pelo governo português com a invocação dos seus compromissos no âmbito da estratégia da OTAN (posição que foi criticada num comunicado da Comissão diocesana Justiça e Paz de Coimbra), penso ser de referir o seguinte.
É certo que não é de esperar que alguma das potências nucleares dê o primeiro passo no sentido do desarmamento nuclear sem outras (suas potenciais opositoras) fazerem o mesmo. Tal significaria romper um equilíbrio que (pelas razões acima indicadas) não deixa de ser instável e precário, mas que também não deixa de ser preferível a um desequilíbrio que faria correr o risco de utilização de armas nucleares pelo campo contrário (precisamente porque ficaria, desse modo, afastado o risco de uma retaliação catastrófica). Esse desarmamento unilateral não seria, pois, ainda, um caminho para a verdadeira paz. O desarmamento só será expectável e frutuoso se for multilateral.
Por outro lado, a abolição das armas nucleares deve ser inserida numa redução global de outro tipo de armas. De pouco serviria abolir armas nucleares se daí derivasse um aumento do risco de utilização de armas convencionais (também por estar afastada a hipótese de retaliação catastrófica com armas nucleares).
Convirá, então, nos apelos dirigidos aos governos de países da OTAN deixar claro que não se advoga um desarmamento unilateral, mas um desarmamento global e controlado.
A propósito da iniciativa de várias organizações católicas italianas a que acima me referi, iniciativa dirigida a um governo de um país membro da OTAN, vi afirmada uma posição que subscrevo: não se trata de romper com os compromissos assumidos no âmbito dessa organização (que considero manter a sua importância como aliança de legítima defesa coletiva e de defesa da democracia, uma aliança que foi posta em causa na anterior Administração norte-americana, mas que a atual poderá reativar), mas de elaborar, nesse âmbito, uma proposta construtiva de mudança de estratégia, que não se resigna à aceitação da dissuasão como situação definitiva, mas que se empenha na superação dessa situação em ordem ao desarmamento multilateral, global e controlado. Desse modo, a OTAN poderá ser instrumento de construção de uma paz autêntica, sólida e duradoura.
Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz.