
“Se a pena de Deus for também a pena dos humanos, a responsabilidade pelo comportamento dos últimos, para o bem ou para o mal, não pode sistematicamente ser endossada ao primeiro.” Foto © rawpixel /freepik
Em pequeno opúsculo intitulado Madre Teresa Beata, há uma citação inicial da própria madre Teresa que diz o seguinte: “Foi tudo obra de Deus. Nada foi obra minha. Não sou mais que um pequeno lápis na mão de Deus.”[1]
Os terroristas islâmicos que atacaram o jornal satírico francês, em 7 de Janeiro de 2015, assassinando doze pessoas, terão gritado ‘Allahu Akbar’[2], que significa ‘Deus é grande’.
Recentemente, alguns abusadores, de acordo com os testemunhos recolhidos, justificaram desta forma os delitos cometidos:
“Que era o representante de Deus por isso não era pecado. (T401, F, 1973)
Não precisava de dizer nada, era o Sr. Padre. (T411, F, 1976)
Anda cá moça, estás ao meu serviço. Estás ao serviço de Deus. (T418, F, 1955)
Que tinha de fazer o que Deus mandava. (T107, F, 1972)
Fazia parte do seu trabalho. (T27, F, 2001)”[3]
Estes, e muitos outros, exemplos colocam-nos face a esta interrogação: mas afinal quem detém a pena de Deus?
Sem dar uma resposta, a parábola do Bom Samaritano, narrada no Evangelho de Lucas (10: 25-37), pode ajudar a encontrar um caminho.
Questionado acerca do que é necessário fazer para alcançar a vida eterna, Jesus responde, para o que interessa agora, o seguinte: “ama o teu próximo como a ti mesmo” (Lucas, 10: 27). A segunda pergunta incide sobre a definição de ‘próximo’. E, nesse ponto, Jesus conta a parábola que parafraseamos: um homem, que descia de Jerusalém para Jericó, é roubado e espancado por ladrões. Ferido e sem roupa fica às portas da morte. Passam por ele um sacerdote e um levita que o evitam. Aparece depois um samaritano que trata e cuida do moribundo. Jesus termina então a parábola sem dar a quem o inquiria, de facto, uma explicação de ‘próximo’, mas um exemplo: “Então vai e faz o mesmo.” (Lucas, 10: 37).
A força do exemplo decorre de o samaritano, um humano, ter aprendido o que deve ser feito nestas circunstâncias, sem ter tido necessidade de ser ensinado para isso.
Dir-se-ia até que há uma certa inversão do habitual ensinamento bíblico: Jesus recorre ao comportamento de um humano para dizer quem é o ‘meu próximo’.
Não estou a sugerir que Deus ou Jesus sejam dispensáveis, mas apenas que o samaritano faz como deve ser feito, ou seja, faz, neste caso, como Jesus recomenda que se faça: “Então vai e faz o mesmo.” O mesmo que o samaritano fez: o inquiridor aprende com a resposta de Jesus que, por sua vez, para esse fim, narra uma parábola de um humano.
Chegados a este ponto, podemos voltar à interrogação inicial: se a pena de Deus for também a pena dos humanos, a responsabilidade pelo comportamento dos últimos, para o bem ou para o mal, não pode sistematicamente ser endossada ao primeiro.
O samaritano, ou o abusador, escrevem igualmente e, ao fazê-lo, partilham a responsabilidade das suas acções.
“Que era o representante de Deus por isso não era pecado. (T401, F, 1973)
«Anda cá moça, estás ao meu serviço. Estás ao serviço de Deus. (T418, F, 1955)
Que tinha de fazer o que Deus mandava. (T107, F, 1972)” são, na verdade, afirmações que a parábola do Bom Samaritano tornam, para dizer o mínimo, intrigantes.
Indo directo ao ponto: são hediondas.
[1] Madre Teresa Beata, 2003, Paulinas Multimédia, Porto.
[2] Jornal Público, 7 de Janeiro de 2015.
[3] Dar voz ao silêncio. Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa. Relatório Final. Lisboa, Fevereiro 2023, p. 294.
Rui Estrada é professor da Universidade Fernando Pessoa.