No dia que evoca a memória das vítimas do Holocausto, as Testemunhas de Jeová recorda, que também foram um dos grupos perseguidos pelos nazis. E muitos membros do grupo resistiram ao apelo a que renunciassem às suas convicções em troca da liberdade.

Reconstituição da entrada do campo de extermínio de Auschwitz, com a legenda Arbeit macht frei (O trabalho liberta). Foto © Museu do Holocausto do Porto.
Andrzej Szalbot recusava-se a integrar o exército alemão. Por causa disso, foi preso em 1943 e levado para as instalações da Gestapo, a polícia nazi, em Cieszyn (sudoeste da Polónia, na fronteira com a actual República Checa). Prometeram-lhe a liberdade imediata em troca da assinatura de um documento a renunciar à pertença das Testemunhas de Jeová, e aceitando declarar que os ensinamentos desta organização eram errados. Andrzej recusou-se a assinar. A decisão valeu-lhe ser sujeito a tortura e o espancamento. O próprio relatava: “Perdi a consciência algumas vezes. Não consegui sair de lá sozinho.” Depois de seis semanas de interrogatório, Andrzej foi enviado para Auschwitz. Tinha 19 anos e ficou como o prisioneiro número 108703.
Durante a II Guerra Mundial, milhares de cristãos membros das Testemunhas de Jeová “foram executados ou definharam em campos de concentração nazis ao lado de milhões de judeus e outros grupos de vítimas”, lembra a organização, a propósito do Dia Internacional de Memória das Vítimas do Holocausto, que se assinalou nesta quinta-feira, 27 de Janeiro.
A história da família Cienciała é também evocada pelas Testemunhas de Jeová: em 1943, Helena Cienciała foi presa pela Gestapo e enviada para Auschwitz, onde foi marcada como a prisioneira número 45856. Dois meses depois, Paweł, o pai, chegou também ao campo e outros dois meses mais tarde, foi a vez da mãe, Ewa (que viria a morrer no campo). A única razão para a prisão foi também o facto de integrarem as Testemunhas de Jeová.
O ódio nazi aos membros deste grupo religioso, que eram apelidados de “inimigos do Estado”, tinha uma explicação: as testemunhas recusavam várias propostas do nazismo que não coincidiam com os seus princípios. Christine King, historiadora ligada ao grupo, recorda que as Testemunhas de Jeová tinham uma posição politicamente neutra e por isso não faziam a saudação Heil Hitler nem participavam em actos racistas e violentos. Nas suas publicações, as TJ identificavam “a perversidade do regime”, inclusive “no que estava a acontecer aos judeus”, acrescenta a historiadora, num livro sobre a Shoah e os cristãos, publicado pelo Yad Vashem de Jerusalém. (Carol Rittner, Stephen D. Smith e Irena Steinfeldt, The Holocaust and the Christian World).
No documento enviado ao 7MARGENS pela Associação das Testemunhas de Jeová (ATJ), que recorda esta faceta da história da II Guerra menos conhecida da opinião pública, a organização cita ainda o recente livro Holocausto, da historiadora portuguesa Irene Flunser Pimentel: “Muitos outros seres humanos, não tendo sido objeto de genocídio e de assassínio em massa, foram também perseguidos até à morte pelos nazis e pelos seus cúmplices, como aconteceu com […] centenas de testemunhas de Jeová.”
O documento da ATJ resume alguns dados: mais de um terço das cerca de 35 000 testemunhas de Jeová na Europa ocupada pelos nazis sofreu perseguição direta; cerca de 4200 foram enviadas para campos de concentração; destas, cerca de 1600 foram exterminadas (548 das quais por execução, por exemplo, através de fuzilamento ou decapitação; e incluindo, pelo menos, 39 menores.
Também centenas de crianças foram arrancadas das suas famílias e levadas para casas e reformatórios nazis, resume a ATJ acerca da perseguição de que o grupo foi alvo. Conhecidas como “Estudantes da Bíblia”, as testemunhas de Jeová foram “o único grupo no Terceiro Reich a ser perseguido só por causa das suas crenças religiosas”, diz o professor universitário Robert Gerwarth.
Triângulo roxo como identificação

Chegadas aos campos de concentração ou de extermínio, as testemunhas eram identificadas, nos uniformes de prisioneiros, com um triangulo roxo voltado para baixo. Mas, ao contrário do que acontecia com outras vítimas, porém, elas tinham direito a escolher se preferiam morrer ou renunciar à sua convicção religiosa: “Entre as testemunhas de Jeová enviadas para campos de concentração, as que se arrependessem podiam ser libertadas”, escreve Irene Pimentel no livro citado.
“Para o regime, era uma vitória maior fazer com que as testemunhas de Jeová violassem as suas convicções religiosas do que matá-las ou colocá-las em campos de concentração”, recorda a ATJ. “Por isso, os nazis ofereciam às testemunhas de Jeová a oportunidade de evitar a execução e de ser libertadas de um campo de concentração se assinassem uma Erklärung (declaração emitida a partir de 1938) a prometer que renunciariam à sua fé, que denunciariam à polícia outras testemunhas de Jeová, que se sujeitariam totalmente ao regime nazi e que defenderiam a ‘Pátria’ com uma arma na mão.”
Geneviève de Gaulle, sobrinha do general Charles de Gaulle e membro da Resistência Francesa, confirma a mesma possibilidade, enaltecendo a firmeza das testemunhas que conheceu no campo de concentração de Ravensbrück. “Essas mulheres que pareciam tão frágeis e desgastadas, eram mais fortes do que as SS, que tinham poder e todos os meios à sua disposição. Elas tinham a sua força, e ninguém conseguia vencer a sua força de vontade”, afirma, citada no livro Jehovah’s Witnesses Stand Firm Against Nazi Assault (“Testemunhas de Jeová firmes contra a agressão nazi”), editado pela Watch Tower Bible, a editora internacional das TJ.
Apesar de a tortura e a privação ser muitas vezes usada para levar as testemunhas de Jeová a declarar a renúncia às suas convicções, só “um número extremamente reduzido” o fez, diz, citado ainda no mesmo documento da ATJ, o historiador Detlef Garbe no livro Between Resistance and Martyrdom: Jehovah’s Witnesses in the Third Reich (“Entre a resistência e o martírio: As testemunhas de Jeová no Terceiro Reich). “A intenção declarada dos governantes [nazis] era eliminar completamente os estudantes da Bíblia da história alemã”, acrescenta Garbe.
Nesta evocação do que foi a perseguição e martírio das testemunhas sob o terror nazi, a ATJ cita várias declarações de pessoas externas ao grupo. Entre outras, está Anna Pawełczyńska, sobrevivente do campo de extermínio, que refere, no livro Values and Violence in Auschwitz (“Valores e violência em Auschwitz”): “Esse grupo de prisioneiros era uma força ideológica sólida e venceu a batalha contra o nazismo. O grupo alemão dessa seita era uma minúscula ilha de resistência incansável no seio de uma nação aterrorizada, e [os seus membros] agiam com esse mesmo espírito destemido no campo de Auschwitz. Conseguiram ganhar o respeito dos seus companheiros de prisão […], dos funcionários prisioneiros, e até dos oficiais das SS. Todos sabiam que nenhum ‘Bibelforscher’ [Testemunha de Jeová] executaria uma ordem contrária à sua crença religiosa.”
A ATJ retira uma conclusão deste processo histórico: “O fracasso da coerção nazi no caso das testemunhas de Jeová contrasta com a sujeição generalizada da sociedade aos objectivos nazis antes e durante o Holocausto. A resistência não-violenta das pessoas comuns ao racismo, extremo nacionalismo e violência, merece uma reflexão ponderada no Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.”