
“A guerra na Ucrânia é para nós, jovens, a primeira ameaça militar à porta do Ocidente protegido que conhecemos desde sempre.” Foto © Janifest / Depositphotos.
“Tudo o que posso fazer é esperar, tão calmamente quanto possível, que tudo acabe. Tanto os judeus como os cristãos estão à espera, o mundo inteiro está à espera, e muitos estão à espera da morte.” Foi desta forma que Anne Frank acabou a carta à sua fiel amiga Kitty, a 13 de janeiro de 1943, numa altura em que a guerra já deflagrava a toda a força pela Europa fora. Quase 80 anos depois, voltam a atar-se os nós na garganta ao pensar em todos aqueles que perderam a esperança num futuro de liberdade e de autodeterminação – e que, tal como Anne Frank, se resignam a procurar proteção e tranquilidade enquanto esperam que o banho de sangue da guerra chegue ao fim sem os atingir.
Foi com esta calma – e um sorriso tímido que resplandecia alívio por se afastar da malvadez humana – que no domingo, 6 de março, um menino ucraniano cruzou sozinho a fronteira entre a Ucrânia e a Eslováquia, depois de horas a fio a caminhar desde Zaporizhzhia, a sua cidade natal no sudeste da Ucrânia. Com ele, trazia apenas uma mochila, um saco de plástico e, na palma da mão, um número de telemóvel de familiares na Eslováquia que tentam agora garantir o que o mundo se viu incapaz de lhe dar de um dia para o outro: a possibilidade de crescer e de concretizar sonhos.
Numa escala bem mais pequena e com o terror das sirenes a soar apenas pelos altifalantes dos smartphones, é este o medo que paira pela cabeça das gerações mais jovens desde a manhã de 24 de fevereiro, quando o despertador os acordou para algo muito mais grave do que um atraso para as aulas. A guerra na Ucrânia é para nós, jovens, a primeira ameaça militar à porta do Ocidente protegido que conhecemos desde sempre. Não sentimos na pele a instabilidade da Guerra Fria nem o pavor do 11 de setembro, mal nos recordamos da Guerra do Iraque e foi de longe que assistimos à Primavera Árabe. O discurso facínora de Putin é a primeira imagem concreta que temos da malvadez imprevisível, impiedosa e sem Humanidade – e que se traduziu numa invasão ao país vizinho, cozinhada a lume brando durante semanas a fio e temperada com o ingrediente secreto de qualquer autocrata: um desejo cego e insaciável de imperialismo.
Putin já fizera bluff com a saída de tropas da fronteira com a Ucrânia, impediu corredores humanitários para a saída de civis, atacou maternidades e hospitais, fez da autodeterminação algo que se pudesse contestar num direto televisivo, reativou discursos nacionalistas que (apesar de cada vez mais isolados) nos devem deixar em alerta pelo ódio e pela raiva desmedida que carregam. É impossível adivinhar o que vai nas suas células cinzentas, mas de uma coisa temos a certeza – Putin não tenciona ficar por aqui.
Aliás, do auge dos seus 70 anos, o líder russo mostra cada vez mais que não tem nada a perder. Não hesitou em dizer que as sanções económicas do Ocidente são equivalentes a uma declaração de guerra, foi sem pestanejar que ordenou que caças russos sobrevoassem o espaço aéreo sueco e rapidamente decretou a detenção de todos os russos que protestassem contra a “operação militar especial para a desmilitarização e desnazificação da Ucrânia”.
Fazer planos do que acontecerá nos próximos meses e anos é, desta forma, uma atividade que pertence a uma só ciência – a futurologia. Mesmo assim, é disso que não abdicamos desde o final de fevereiro: seguir a par e passo as posições da OTAN/NATO, fazer refresh constante nas cronologias ao minuto dos media, pormo-nos no lugar de todos aqueles que largaram sonhos, ambições e estudos para defenderem a sua nação ou para conseguirem salvar a vida. O resultado? Um medo avassalador do futuro, onde as redes sociais (mesmo que não percebamos) são um dos principais demónios.

Num artigo publicado a 3 de março no Público, Rita Figueiras desconstrói o fenómeno da desinformação desta Guerra na Ucrânia, indo para além da já previsível propaganda nos media e da proibição de redes sociais em território russo. O conflito no Leste Europeu é o primeiro a ocorrer na era da massificação dos smartphones e de um acesso instantâneo à internet em qualquer lugar. Todos nós somos agora capazes de partilhar infinitamente conteúdos vários e contribuir para um algoritmo que influencia – e muito! – a opinião pública. Os relatos que chegam em primeira pessoa da Ucrânia têm um impacto muito maior que as notícias veiculadas pelos jornais: mostram o sofrimento no terreno, exponenciam a nossa raiva contra um imperialismo asqueroso e, no meio do pavor e da azáfama do dia-a-dia, nem nos lembramos de que podem não ser verdadeiros – olhe-se, por exemplo, para o abalroamento de um idoso por um tanque nas ruas de Kiev. Tudo isto não é, porém, mais um sinal de falta de literacia mediática. Bem pelo contrário. O facto de a geração dos fact-checks – habituada a duvidar de tudo o que vê na Internet por já ter sido enganada vezes sem conta – se mostrar incapaz de separar o falso do verdadeiro é mais um sintoma do medo de uma guerra que, afinal, não está assim tão longe.
E se, mesmo assim, não deixamos de ir para a rua em solidariedade com o povo ucraniano ou de aplaudir o trabalho de todos aqueles que vão em missão para o epicentro do conflito, os grandes decisores também não devem ficar reféns do receio de um autocrata que já mostrou que é capaz de tudo. A invasão de um país mais fraco por outro mais forte não é só um ato moralmente condenável: é um desafio à ordem e à segurança internacional na qual vivemos durante quase 30 anos. O mundo não ficará igual depois desta guerra – e ter medo de o enfrentar é continuar a ignorar o problema que nos fez chegar até aqui. O cenário atual colocou-nos perante um equilíbrio difícil: por um lado, o dever moral de impedirmos que o conflito se arraste para outras zonas do planeta e mate mais inocentes; por outro, a obrigação de não ignorarmos as mortes e o sofrimento que a maldade e a violência incomensuráveis já estão a provocar.
Aliás, é assim que as gerações mais jovens anseiam o final desta guerra – como um momento em que deixamos finalmente de lado os nacionalismos exacerbados, as pinturas “preto no branco” da geopolítica e o desrespeito pela autodeterminação dos povos que insiste em (re)aparecer de quando em vez na História.
Estamos, porém, ainda longe do espírito de Anne Frank que, há 80 anos, conseguia esperar calmamente pelo fim da Segunda Guerra Mundial. Não vemos como é possível reconstruir o castelo de estabilidade que deixámos desmoronar ao longo da última década apenas porque ignorámos indícios demasiados explícitos do terramoto que aí viria. É esta a falta de esperança que nos atinge – e que nenhuma Kitty ou desabafo num diário é capaz de amainar. Haverá algo pior para alguém que só queria chegar aos 20 anos com a cabeça recheada de sonhos? A pergunta é retórica, claro.
Alexandre Abrantes Neves é estudante de Comunicação Social e Jornalismo na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Contacto: alexandre.m.a.neves@gmail.com