A progressiva iluminação das mulheres no budismo

Ilustração © Sara Naves
Tradicionalmente, e como em grande parte das tradições religiosas, as mulheres não tinham um papel destacado no budismo. Os livros mais importantes, como o Dharmapadaou o Livro Tibetano dos Mortos foram escritos por monges e espelhavam a concepção patriarcal das antigas sociedades asiáticas. Segundo Bernard Faure, autor do livro The Power of Denial: Buddhism, Purity and Gender (“O poder na negação: Budismo, pureza e género”) e estudioso de religiões asiáticas, tal como “a maioria dos discursos clericais, o budismo é misógino por inerência, mas tem um dos discursos mais flexíveis, aberto a multiplicidades e contradições”. Essencialmente, qualquer pessoa, de qualquer sexo ou idade se pode tornar Buda – apesar de, na prática, isso não ser assim tão simples.
Ainda assim, no tempo de Buda Gautama, existem várias representações positivas de mulheres, algo que, segundo os historiadores, se alteraram (para pior), alguns séculos após a sua morte.
A história do budismo e das mulheres tem início com Mahapajapati Gotami, madrasta de Buda Segundo o livro Old Path, White Clouds (“Caminho velho, nuvens brancas”), de Thich Nhat Hanh, que pretende recordar a história de Gautami, a madrasta e tia de Buda que quis ser consagrada quando morreu o rei Suddhodhana, seu marido, de Kapilavastu, no actual Nepal. O Buda recusou e partiu para Vesali, na Índia. Gotami cortou o cabelo, envergou vestes amarelas e seguiu o Buda, acompanhada de um grupo de mulheres que também queriam ser consagradas. Chegadas a Vesali, voltaram a fazer o mesmo pedido. Ananda, um dos principais discípulos, interferiu por Gotami, questionando Buda:
“ – Senhor, as mulheres são capazes de realizar as várias etapas do caminho da iluminação, como monjas?
– São, Ananda, respondeu o Buda.
– Se é assim, Senhor, seria bom se as mulheres pudessem ser consagradas como monjas, respondeu Ananda, encorajado pela resposta de Buda.
– Se Mahapajapati Gotami aceitar as oito condições, ela será consagrada como monja.”
Após esta intervenção, Gotami aceitou as oito Garudhammas (regras monásticas para mulheres, adicionais às que havia para os homens) e foi-lhe garantido o estatuto de primeira monja (bhikkhuni). As traduções deste episódio são dispares em alguns pormenores mas há consenso em dizer que o episódio ocorreu cinco anos após a iluminação de Buda e a primeira consagração de um homem para a sangha, a comunidade religiosa budista.
Historiadores e investigadores apontam alguns argumentos para explicar porque Buda não aceitou de imediato a consagração de Gotami: a condição e estatuto da mulher na altura (menos pessoas se interessariam pelo budismo se as mulheres fossem consagradas); a proteção das mulheres de humilhação pública; ou porque Buda estaria a testar a devoção daquelas mulheres.
Outra característica importante em relação à maneira como a mulher é vista no budismo prende-se com os vários ramos que nele existem. O budismo está dividido em três escolas: Theravada, Mahayanae Vajrayana. O primeiro ramo é considerado mais conservador e ortodoxo, dá mais ênfase a atingir o nirvana sozinho, a um nível pessoal. Já no budismo Mahayana, considera-se mais importante realizar o nirvana mas para dedicar a vida a ajudar os outros. Vajrayana, a mais recente escola (incluída na Mahayana) é também vista como a forma de budismo que mais destaca as mulheres e o feminino.
Muitos textos Mahayana viam o facto de se ser mulher e ser buda como antíteses. Mas outros textos afirmam que ser buda é algo sem forma feminina nem masculina, manifestando-se para além do género. Alguns textos retratam Buda em forma feminina.
Até recentemente, as linhagens de mulheres monásticas permaneciam apenas no budismo Mahayana (China, Coreia, Taiwan, Vietname e Japão). Apesar de continuarem a ser dominadas por homens, as formas de budismo no leste da Ásia trouxeram aspetos favoráveis às mulheres. A consagração total de mulheres é praticada na China e na Coreia e asanghade monjas prospera tanto na Coreia como em Taiwan, onde muitas jovens com educação superior têm procurado a consagração monástica.
O apoio do Dalai Lama
No livro Buddhism after Patriarchy (“O budismo depois do patriarcado”), Rita Gross dá conta que nos países onde predomina a escola Theravada as opções das mulheres sempre foram mais limitadas. Apesar de poderem adotar um estilo de vida de renúncia, não eram oficialmente reconhecidas como monjas – tendo um estatuto mais baixo que os monges. Nessa escola, o papel mais comum para as mulheres costuma ser o de dadoras. Na altura em que o livro foi escrito (1993), a autora afirmava que estariam a surgir “movimentos que tentavam reavivar a consagração das monjas”, normalmente controversos e recebidos com hostilidade ou cepticismo.
Hoje em dia, algumas mulheres têm tomado os votos monásticos completos nas escolas Theravada, apesar de continuarem a ser consideradas consagrações inválidas pelos mais conservadores.
Ven Dhammananda foi a primeira monja tailandesa Theravada, consagrada no Sri Lanka, em 2001. Na altura, os monges budistas tailandeses opuseram-se fortemente à sua consagração mas, hoje em dia, há cerca de 50 mulheres bhikkhuni naquele país.
Ainda assim, muitas monjas asiáticas continuam a pugnar por melhores condições e educação já que “séculos de discriminação não serão desfeitos da noite para o dia”.

O Dalai Lama na Mesquita Central da Comunidade Islâmica de Lisboa, em setembro de 2007: o seu apoio a um lugar de igualdade das mulheres no budismo tem sido claro; foto © Mohamed Abed
Em mais do que uma ocasião, o Dalai Lama expressou o seu apoio à total consagração de monjas. Em 2007, no Congresso Internacional sobre o papel da mulher budista na consagração, o Dalai Lama interveio a favor da continuação desta prática, afirmando que “se a maioria dos líderes mundiais fossem mulheres, provavelmente haveria menos perigo de guerra e maior cooperação global”. Já em 2011, em resposta à questão “Acha que o próximo Dalai Lama deve ser uma mulher?”, respondera que sim, porque já existem mulheres que são elevadas reincarnações entre lamas tibetanos.
No mundo ocidental, há várias monjas que partilham a sua experiência, normalizando a experiência de uma mulher em altos cargos religiosos. Claudia Coen de Souza ou monja Coen, em português, é brasileira e monja, e compara a vida de mulher num mosteiro à de um homem, afirmando que a das mulheres é ainda mais regrada e que elas “tendem a ser mais exigentes umas com as outras”.
Jetsunma Tenzin Palmo, monja britânica, defensora de iguais direitos e oportunidades para monjas budistas e uma das poucas yoginisa ser treinadas no Oriente – onde viveu durante doze anos numa caverna remota dos Himalaias – partilha, em forma de vídeo, que desde que o Dalai Lama falou do assunto, há mais mulheres a quererem ser monjas: “Se formos a algum mosteiro e perguntarmos qual o maior obstáculo para as mulheres se tornarem monjas, elas vão referir baixa auto-estima e falta de confiança. E isto vai levar algum tempo a mudar. Mas tenho notado que as primeiras raparigas que se tornaram monjas no nosso mosteiro são completamente diferentes das alunas mais recentes, que são mais confiantes e nem sabem que a norma expectável delas é a submissão – porque vêem que já existem monjas, não é algo fora do comum.”
Quão grandes são as diferenças de género dentro de cada religião? E o que querem as mulheres crentes em cada uma das confissões? Até 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, o 7MARGENS traça um retrato da situação das mulheres nas principais tradições religiosas e fala de alguns dos debates existentes sobre os seus papéis dentro das diferentes confissões, bem como sobre outras questões relativas à realidade social das mulheres nas sociedades contemporâneas.
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