
Sessão de posse de André Luiz de Almeida Mendonça no STF. Foto © Isac Nóbrega
Em dezembro, a posse de André Mendonça como ministro do Supremo Tribunal Federal brasileiro foi destaque, consagrando a fase ultraconservadora do Brasil. O primeiro discurso de Mendonça após sua aprovação para o STF em 1º de dezembro focalizou a Bíblia, o indivíduo e a família, as mesmas “ideias-força” que vêm orientando a conjuntura política nacional desde 2015. Como um “bom calvinista”, ele destacou que não é merecedor de suas conquistas, mas se colocou como exemplo de esforço e dedicação, flertando, assim, com a “ideologia do sucesso” presente na “teologia da prosperidade” e em outros movimentos religiosos. Em referência à famosa frase do astronauta americano Neil Armstrong, primeiro homem a pisar na Lua, Mendonça disse sobre sua vitória: “É um passo para o homem, mas na história dos evangélicos do Brasil é um salto”, sinalizando que seu maior compromisso é representar o grupo evangélico no Supremo Tribunal Federal.
Em 2019, o Presidente Jair Bolsonaro afirmou que um dos ministros que indicaria para o STF seria “terrivelmente evangélico”, pois o “Estado é laico, mas nós somos cristãos […] e esse espírito deve estar presente em todos os nossos poderes”. Promessa feita, promessa cumprida. Na nomeação de Mendonça, e depois no culto de Ação de Graças após sua posse, Bolsonaro repetiu outra ideia-força presente em nosso contexto político, a liberdade: “O André hoje […] será mais uma pessoa ao lado da nossa Constituição, respeitando a Carta Magna, respeitando a democracia e, cada vez mais, lutando por um bem maior de todos nós, que é a nossa liberdade”. Assim, Bíblia, indivíduo, família, laicidade e liberdade são, portanto, o ponto arquimediano sob o qual gira o atual Governo brasileiro.
A olho nu, esses são princípios louváveis, e podemos perguntar: onde está, então, a fenda desses discursos? Primeiro, é preciso compreender o que é cada um desses princípios, isto é, quais são os seus conceitos. Depois, é importante ter claro que, como afirma Hannah Arendt na obra A dignidade da Política, “a doutrinação é perigosa por nascer principalmente não do conhecimento, mas da compreensão”. Ou seja, os discursos políticos podem não veicular esses princípios em si, mas a compreensão que os atores políticos têm deles, de acordo com suas vivências e interesses.
Uma compreensão ipsis litteris da Bíblia pode alimentar, por exemplo, uma visão de mundo exclusivista que tende a eliminar o diferente, opondo-se aos princípios constitucionais, que valoriza e resguarda a pluralidade. A noção de indivíduo ou individualidade, por outro lado, é fundamental em nossa cultura porque permite que sejamos reconhecidos como sujeitos de direitos e deveres. Mas quando o indivíduo é pensado isoladamente e seus interesses são estendidos somente ao seu núcleo familiar ou religioso, caímos em uma lógica excludente, o que no campo político é novamente inconstitucional e antidemocrático. O conceito de laicidade, em linhas gerais, significa que o Estado não adota uma confissão religiosa e não discrimina nenhuma religião. Assim, os magistrados têm o direito de confessar suas fés, como garante a Constituição a todos os cidadãos; o problema é quando essa confissão se sobrepõe à própria Constituição, faltando-lhes o entendimento e o respeito à pluralidade étnica, cultural e religiosa do país.
Quando ouvimos sobre liberdade, principalmente num contexto que envolve religião e política, é preciso esclarecer, como aponta Hannah Arendt também em A dignidade da Política (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 40; 59-60) que “a liberdade que o cristianismo trouxe ao mundo significava estar livre da política”, e por isso “o único interesse que tem o cristianismo no governo secular é de proteger sua própria liberdade, é garantir que os que estão no poder permitam, entre outras liberdades, que se esteja livre da política”. Talvez, por essa razão, é mais importante proteger o direito à liberdade – e liberdade de culto, como fez Mendonça enquanto ministro da Advocacia-Geral da União (AGU) ao defender a abertura de igrejas e templos num momento que era preciso conter a disseminação da covid-19 [“Os verdadeiros cristãos não estão dispostos jamais a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto”, disse ele] – que o direito à vida ou que o direito à igualdade. Devemos nos atentar, portanto, aos desgastes da nossa democracia e à colonização a que o judiciário está sendo submetido.
Maria Angélica Martins é socióloga e mestra em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. Pesquisa a relação entre fenómeno religioso e política com ênfase para o protestantismo histórico e o neocalvinismo holandês.