
O Papa esteve sempre muito próximo dos jovens durante a JMJ. Foto Sebastião Rôxo / JMJ Lisboa 2023
A realização da JMJ e a presença do Papa em Lisboa são uma oportunidade para refletir sobre o lugar e a importância da religião na sociedade.
Continuamos a pensar a religião sobretudo a partir da pergunta “Deus existe?” e do conflito entre a religião e a ciência como fontes de conhecimento do mundo. A primeira, já o sabemos, é uma pergunta sem resposta de conhecimento e a segunda é uma questão sem sentido.
A ciência diz-nos “como” é o mundo e a religião diz-nos “que mundo” queremos. A religião não é alternativa à ciência, sendo incompetente nesse domínio; a ciência não é alternativa à religião, pois do que sabe podem ser retirados mil mundos diferentes sem podermos assim decidir que mundo queremos.
O discurso científico é de modo indicativo, descritivo, explicativo. O discurso religioso é de modo conjuntivo: o que queremos que seja. E este modo conjuntivo ou prescritivo é outra área de conflito (ou recusa), no mundo, com uma dada religião.
Às vezes parece surreal o discurso aguerrido dos cientistas contra a religião como se esta, nascida, por exemplo, há dois mil anos, o cristianismo, ou dois mil e quinhentos, o budismo, tivesse de patentear já nas suas narrativas fundadoras as exigências do método científico que tem apenas quinhentos anos. Este surrealismo deve muito, é claro, às pretensões injustificadas de alguns agentes religiosos no campo do conhecimento objectivo dos factos do mundo, mas não é isso que vemos discutido. Como é que, por exemplo, se pode pretender que o livro do Génesis seja coincidente com o evolucionismo do século XIX ou a cosmologia do século XXI?
O objecto da religião é, repita-se, definir o mundo que queremos, ou melhor, a vida que queremos, tanto no domínio coletivo como no pessoal. A religião não descobre verdades sobre como o mundo é, supõe o mundo conhecido num determinado momento, antes institui a Verdade do mundo que quer e realiza esse mundo de dois modos complementares, formando por dentro os seus crentes para esse mundo e concretizando de modo performativo esse mundo, ou numa performance global em sociedades constituídas sob a sua matriz religiosa ou em performances parciais, como a JMJ, em que pretende afirmar e concretizar, isto é, viver, experienciar, esse ideal de um mundo em construção.
É oportuno analisar as intervenções do papa Francisco aos jovens, apurar os que ele pede aos jovens e fazermos a prospetiva do que seria o mundo construído por esses valores. Depois, analisarmos outros discursos programáticos e destilarmos os valores e o projeto de mundo que eles pretendem construir. E, finalmente, olharmos para as dinâmicas dominantes do mundo atual e vermos a que distância se encontram. Estas podem talvez ser ditas como consumismo sob impulso externo, o carreirismo para sempre mais, o individualismo do olhar e da ação, o hedonismo de curto prazo e assim por diante. Mas o mundo não é só assim, também estão presentes propostas alternativas, algumas das quais são religiosas, embora outras sejam profanas, digamos assim. A proposta de Francisco tem algumas palavras fortes: alegria, fraternidade, escuta, periferia, serviço, paz, respeito pela natureza…
A religião não é da ordem do conhecimento, mas da ordem da arte. As narrativas religiosas são poemas e romances que, como todos os poemas ou romances ou outras formas de arte, são actos de intervenção do mundo de modo a darem-lhe uma certa forma e orientação.
O mundo humano não é um mundo dado. Os seres humanos são por natureza sociais, mas a nossa sociedade não é por natureza humana. O mundo dado é o do animal primata, trazido nos genes, próximo do mundo de outros primatas superiores. O mundo humano tem de ser construído sobre esse mundo animal, por um processo de elevação que é, no essencial, de criação do humano. O humano não é dado no animal, é construído sobre ele sob a forma de projeto. As religiões criam um ponto elevado, um padrão grua, transcendente ao mundo atual, para o qual e com o qual pretendem elevar os crentes e a sua cidade. Não há que ter medo de dizê-lo: o programa de uma religião é político (de polis), embora não seja partidário e embora tenham surgido propostas religiosas de matriz individualista apenas preocupadas com a vida interior dos seus crentes (que muitas vezes acabam por construir poder político-partidário, mas isso é outra conversa).
A liderança de Francisco dá sinais públicos de estar a aproximar-se do seu termo. As avaliações que já se vão fazendo, e as que se farão depois (não é difícil prevê-lo), centram-se em duas questões essenciais: que mundo queremos? e que Igreja (como parte do mundo e ao serviço de que mundo) queremos? São as duas faces da mesma moeda. E não é surpreendente que dentro da Igreja e fora dela não haja unanimidade, antes apoiantes e adversários do que Francisco propõe e do mundo que nas suas performances está a construir. Por que razão seria de outro modo?
A JMJ foi um importante acontecimento na Igreja católica portuguesa, e não só, cujos resultados, no entanto, estão ainda em aberto. Mas pode ser também um momento sensível para a sociedade portuguesa se esta levar a sério a questão central sobre que mundo queremos, quais os valores sobre os quais estamos a edificá-lo, para que mundo estamos a formar os nossos jovens, quais os processos e agentes que estão ativos nessa formação, e assim por diante. Sem esquecer, nunca, que os projectos de mundo são plurais, por vezes complementares, por vezes antagónicos, por vezes fragmentários… Muita da conflitualidade com a Igreja católica é expressão de conflitos entre projetos sociais.
Sem esquecer, também, que o mundo animal que sempre trazemos em nós tende a arrastar-nos para baixo se não for forte e eficaz o processo de elevação da sociedade humana que formamos.
José Alves Jana é doutorado em filosofia, professor aposentado, voluntário e dirigente associativo. Contacto: jalvesjana@gmail.com