O Papa Bom e a "alegria do Evangelho"

A propósito dos 60 anos da morte de João XXIII

| 2 Jun 2023

“O bondoso Papa surpreendeu logo, na primeira alocução que fez, ao cair da noite de 28 de outubro de 1958, mal terminaram os demorados trabalhos do conclave, ao pedir à multidão que fizesse um carinho às crianças, ao chegar a casa, dizendo que era da parte do Papa.”

 

João XXIII, que ficou conhecido como o “Papa Bom”, morreu faz neste sábado, 3 de junho, 60 anos.  Os cardeais foram buscar aquele que era o patriarca de Veneza e com idade não longe dos 80, esperando um pontificado de transição, depois do longo magistério de Pio XII. Governou a Igreja Católica por pouco mais de quatro anos, mas mudou o seu rumo, com o gesto profético de convocar um concílio ecuménico.

O bondoso Papa surpreendeu logo, na primeira alocução que fez, ao cair da noite de 28 de outubro de 1958, mal terminaram os demorados trabalhos do conclave, ao pedir às  pessoas presentes na Praça de São Pedro que tivessem um gesto de carinho com as crianças, ao chegar a casa, dizendo que era da parte do Papa. Mas foi sobretudo quando começou a visitar os hospitais, paróquias e prisões da diocese de Roma, a estabelecer canais de comunicação com outras confissões cristãs e com os judeus, algo que não acontecia antes, que a sua bondade, simplicidade e arrojo se tornaram mais evidentes.

Iniciou também uma política de abertura com os regimes comunistas do leste europeu (‘ostpolitik’) e respondeu aos perigos da guerra fria com uma encíclica marcante – a Pacem in Terris – que vinha chancelada com a novidade de, pela primeira vez, ser direcionada não apenas à hierarquia da Igreja ou ao conjunto dos católicos, mas “a todos os homens de boa vontade”.

O gesto mais ousado e de consequências à escala planetária foi, de facto, o Concílio Vaticano II, que gerou perplexidade, medo e resistência na burocracia romana. Esta assembleia magna do catolicismo, aberta a representantes de outras confissões, teve a particularidade de assentar numa gigantesca auscultação das dioceses, movimentos e obras de toda a Igreja. Era, ao fim e ao cabo, a aplicação do método da Ação Católica que, na “revisão de vida”, não faz o discernimento (julgar), nem a decisão sobre o que fazer (agir), sem caraterizar e analisar primeiro a realidade.

No discurso inaugural do Concílio, em 11 de outubro de 1962, quando lhe tinha sido já diagnosticado um cancro, vê-se o cuidado que põe em acalmar os setores mais renitentes às mudanças que se pressentia irem acontecer.

Na verdade, por várias vezes refere que, com este magno acontecimento, não se pretende tocar no “tesouro precioso” da doutrina da Igreja. “Uma coisa, explica repetidamente, é o depositum fidei; outra é a “formulação com que são enunciadas” as verdades da fé, de modo a “responder às exigências do nosso tempo” e olhando “para o presente, para as novas condições e formas de vida introduzidas no mundo hodierno”.

De facto, não se pode encaixar a figura deste Papa nos esquemas rígidos da linguagem político-ideológica, manifestos na antinomia conservador-progressista. Isso, de resto, se poderia dizer, com feições e caraterísticas diferentes, de sucessores de João XXIII.

O que distingue este Papa, ao fim e o cabo, é o centramento na figura de Jesus e naquilo que o atual Papa veio a designar “a alegria do Evangelho”. Isso vê-se nos processos (auscultação, aceitação do debate e até da polémica, participação, adoção da misericórdia para com aquilo que a Igreja considera erros, em vez da via da condenação e da punição), mas também na visão, nos gestos e modos de estar (capacidade de rutura com modos obsoletos e rotinas vazias e anquilosadas e, sobretudo, capacidade de profetismo).

João XXIII morreu entre a primeira sessão do Vaticano II e a segunda, que ele desejava que fosse a derradeira. Nesse pressuposto, dirigiu no início de 1963 uma carta a todos os “padres conciliares”, incentivando-os a continuar a ter, nesse intervalo, os trabalhos do Concílio como “a menina dos seus olhos”, aproveitando os meios de comunicação disponíveis na altura (considerados avançados), para prosseguirem os contactos uns com os outros.

Este Papa terá confessado, um dia, a um embaixador, que, com o Concílio pretendia “sacudir a poeira que, desde Constantino, se vem acumulando no trono de São Pedro” e trazer à Igreja Católica “um pouco de ar puro”. Foi bastante mais do que isso. Mas, de tudo o que se passou a seguir, em particular nos pontificados de João Paulo II e de Bento XVI (que, enquanto cardeal Ratzinger, foi o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé durante quase um quarto de século), a dinâmica e o espírito conciliares estagnaram, enquanto se apostou em caminhos que valorizaram modalidades de vivência da fé em geral mais emocionais, carismáticas e “eclesiocêntricas”, com os seus sucessos e as suas limitações.

 

Não se pode considerar a ação de cada Papa desligada da mundivisão de que procede (sobretudo a partir da altura, com João Paulo II, em que os pontífices surgem de realidades eclesiais específicas e diversas) nem dos contextos eclesiais e culturais e das tensões e dinâmicas que os atravessam.

A polémica, surgida sob Bento XVI, sobre se terá existido, com a magna assembleia conciliar, uma continuidade ou uma rutura, não parece ser muito produtiva. Não houve, propriamente, um questionamento doutrinal e muitos dos desacordos e dificuldades (que originaram mesmo um cisma de setores integristas) centraram-se em aspetos de formulação, de organização, de interpretação e de disciplina.

O escândalo dos abusos sexuais, que eclodiu logo no dealbar deste século, mas que já vinha a minar a Igreja anteriormente, constituiu e continua a constituir um problema de tal magnitude que não parece poder ser resolvido em si mesmo, sem mergulhar fundo nas causas e fatores que o originam.

Ainda que nunca tenhamos visto isso ser dito de forma clara nas instâncias mais altas da Igreja, a verdade é que o atual processo sinodal, que retoma e reatualiza a dinâmica do Concílio e o sonho do Papa Bom, poderia (e ainda pode) ser uma forma de fazer aggiornamenti na vida da Igreja, que criem ambientes e culturas – a todos os níveis – que não apenas combatam e previnam novos abusos, como possibilitem o surgimento de comunidades acolhedoras, solidárias, participadas e responsáveis.

A Igreja Católica está claramente num momento de encruzilhada. A resistência, que não se pode ignorar, de grandes setores da Igreja ao desafio da sinodalidade lançado pelo Papa Francisco, na esteira do agora santo João XXIII, não augura excessivas esperanças. Mas os crentes sabem que os dinamismos de mudança da Igreja, que se fazem pela escuta, pelo encontro e pelo debate, não resultam de meras correlações de forças e têm caminhos que são, por vezes, surpreendentes. Porque o Espírito sopra onde quer.

 

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