Na história da Branca de Neve, uma passagem havia que me impressionava singularmente: quando os Sete Anões encontravam a princesa caída por terra, um resto de maçã venenosa na boca. Tão linda continuava, que os Anões decidiram guardar o corpo numa redoma de cristal, para que pudessem olhar para ela e senti-la sempre no espaço familiar. Sonhava eu então que um dia faria assim quando a minha mãe morresse – ela também era muito linda e pequenina…
Ao longo da vida, é natural sentir lugares subitamente vazios à nossa volta. Como que nos sentimos roubados com violência, particularmente se nos roubam alguém do convívio frequente ou, mais dolorosamente e contra o que seria “normal”, alguém na flor da vida, como um filho.
Porém, os vivos de cada tempo é que precisam e devem olhar para a história da Humanidade como uma imensa redoma de cristal, que nos faça ter presente o mistério e a responsabilidade da vida. E orgulhosos porque nela também entraremos, pois a Vida da Humanidade floresce na vida de cada qual, com a maior variedade de cores, espinhos, golpes e flores.
Na tradição cristã, o dia de todos os santos, mesmo os não canonizados (1 de Novembro) lembra como eles continuam sempre vivos a nosso lado e na memória do espaço familiar. E sentimos que os que vão à frente são como raízes robustas na terra mãe, que nos transmitem energia para dar muito fruto; e que todos nós vamos ocupando o lugar da geração mais velha, deixando aos outros o nosso testemunho. As leituras da liturgia são o reflexo de antiquíssimas e profundas reacções humanas à aparente frustração do desejo de vida.
O lendário Job e o dinâmico S. Paulo dão as mãos para afirmarem a fé na perenidade da pessoa humana: sou mesmo eu, como quer que vá “fantasiado”, quem verá a Deus “cara a cara”, mergulhando numa aventura inimaginável, onde a tristeza e a morte não terão lugar, e na qual saberemos olhar o mistério da vida. Aprendemos a olhar serenamente para a temporalidade da existência, a superar a angústia da aproximação progressiva da “hora da verdade” e a cair na conta de que, “se o homem exterior se vai arruinando, o homem interior vai-se renovando de dia para dia” (2ª Carta de S. Paulo aos Coríntios).
Precisamos do conforto de sentir à nossa volta olhares de esperança e de confiança. O dia 1 de Novembro é a festa desse olhar. É a festa de todos nós, dos nossos queridos e dos muitos e muitos ignorados. É a festa da construção de um espaço familiar, onde se amansam as angústias, se multiplicam as esperanças. É a festa em que nos revemos em todas as memórias possíveis e em que juntamos as forças para saborear o segredo agridoce da vida e para transmitir às actuais e futuras gerações a convicção de que, “apesar de tudo”, vale a pena viver.
Quando Abraão, o “Pai dos crentes”, ficou “repleto de dias”, diz o Livro do Génesis que ele “se reuniu aos seus antepassados”. E como ele, muitos mais caminharam serenamente para se juntarem aos antepassados, rodeados de amor.
Como eu gostava desta expressão tão doce e familiar, tão longe do medonho tabu dos nossos dias! Fazia-me cair na conta de que também eu sou um elo imprescindível do infindável caminhar da Humanidade. Sentia-me ligado aos do passado, do presente e do futuro e podia amar a todos: pois todos representam as minhas alegrias e angústias, o bem que faço e o mal que não devia fazer, a beleza ou fealdade do meu corpo ou das minhas atitudes… Em cada ser humano se revela tudo aquilo de que eu poderia ser capaz! E nenhum elo da Humanidade é inútil: com todos aprendemos e todos nos despertam para a tensão entre o Bem e o Mal.
Se não pomos o nosso prazer na boa sementeira do futuro, não conseguimos enfrentar e dar sentido ao sofrimento e às catástrofes que nos afligem. Abandonando os outros, ficamos sozinhos e indefesos perante a morte. E mesmo sem a dimensão estritamente religiosa, ser um elo da Humanidade é fortalecer para sempre a grande corrente que forma a aventura humana. O orgulho de ser humano traduz-se no “humanismo”, não só em tempos de calamidade, mas na “política” de todos os dias.
Manuel Alte da Veiga é professor aposentado do ensino superior.