[Brasil, Religião e Poder]

A religião está em declínio?

| 11 Dez 2022

 

Para o teólogo e cientista da religião Claúdio Ribeiro é preciso considerar as experiências de “dupla” ou “múltipla pertença religiosa” no Brasil, que em geral são ocultadas e por isso pouco avaliadas. Foto © Pixabay

Para o teólogo e cientista da religião Claúdio Ribeiro é preciso considerar as experiências de “dupla” ou “múltipla pertença religiosa” no Brasil, que em geral são ocultadas e por isso pouco avaliadas. Foto © Pixabay

 

Li recentemente a opinião do neurocientista Álvaro Machado Dias na Folha de São Paulo de que existe um declínio da religião no Ocidente e essa seria a razão do radicalismo moral na política. A tese de Dias realmente encontra muita ressonância da realidade. Contudo, os argumentos em torno do declínio da religião no Brasil devem ser pensados mais detidamente. Baseado no estudo do Pew Research, o autor considera que “não há religião que cresça tanto quanto o grupo dos que não professam nenhuma fé, na Europa, nos Estados Unidos e em diversos países da América Latina”.

Nos quatros cenários hipotéticos do estudo, no entanto, embora o cristianismo possa perder seu lugar de grupo majoritário nos Estados Unidos, o número de pessoas religiosas não cristãs cresceria, os cristãos ainda seriam o maior grupo religioso e os “sem religião” formariam um grupo maior, mas não seriam maioria. Além disso, o estudo afirmou ter se limitado à identidade religiosa e não à projeção de cenários de mudanças nas crenças e práticas religiosas dos indivíduos.

Nas últimas décadas, os numerosos estudos desenvolvidos no campo das ciências sociais sobre secularização estão sendo repensados criticamente. No pós-1945 os teóricos da secularização observavam um retraimento da religião para a esfera privada, sustentando o discurso de que as sociedades modernas eram aquelas que se tornavam cada vez mais autônomas do poder eclesiástico; defendia-se a tese de que, com o avanço da modernidade, o fenômeno religioso desapareceria das sociedades. Contudo, essa tese não se confirmou quando o foco da observação dos fenômenos religiosos mudou das instituições para as práticas, comportamentos e crenças dos indivíduos (Monteiro, 2012). Embora o campo das ciências sociais ainda não reconhecesse o fosso entre os modelos teóricos e a realidade concreta, estudiosos da religião começaram a pensar o processo da secularização como produto da própria religião e, portanto, seu lugar na esfera pública e política. Nesse sentido, a secularização não significou um declínio da religião, mas uma transformação da própria religião tendo em vista que os indivíduos da sociedade global “escapam” das instituições e articulam novos ambientes simbólicos e de produção de sentido.

Em outro momento do texto, Dias baseia seu argumento acerca do declínio da religião no dado demográfico de que, em São Paulo e Rio de Janeiro, os jovens entre 16 e 24 anos sem religião superam os católicos e evangélicos. Contudo, é importante termos em vista que somente uma minoria dos “sem religião” no Brasil são ateus e agnósticos, o que reforça a necessidade uma nova abordagem para compreender o fenômeno religioso no país. Para o teólogo e cientista da religião Claúdio Ribeiro é preciso considerar as experiências de “dupla” ou “múltipla pertença religiosa” no Brasil, que em geral são ocultadas e por isso pouco avaliadas. É preciso reconhecer que os dados estatísticos, embora sejam importantes para expor a crescente diversificação dos grupos, são insuficientes para uma análise mais completa, visto que, na contemporaneidade, as crenças e práticas são mais significativas do que a pertença formal ou institucional:

As múltiplas pertenças religiosas, tanto as mais conscientes e explícitas quanto as de ordem sincrética ou de trânsito e de assimilação de ideias, valores e visões, se encontram no primeiro polo de significados. Isso se dá sobretudo pela força mobilizadora e pragmática que as expressões religiosas costumam ter na organização da vida cotidiana (Ribeiro, 2018, p. 100).

Nesse sentido, o trânsito religioso é uma constante no campo religioso brasileiro e ocorre não somente quando o indivíduo migra de uma religião para outra, mas também quando realiza uma recomposição simbólico-cultural de diferentes crenças. Há pessoas que afirmam determinadas pertenças religiosas e admitem experimentar outras; Há aquelas que, por razões contraintuitivas, declaram uma religião, mas praticam outra; há as que conciliam mais de uma tradição religiosa sem conflito algum; há pessoas que não aderem a uma religião, mas transitam entre uma variedade de religiões; e há ainda as que mantêm suas pertenças religiosas, mas articulam os elementos simbólicos-rituais de outras (Ribeiro, 2018, p. 96).

Para sustentar seu argumento, Dias também destaca que uma pesquisa recente do Datafolha indicou uma assiduidade menor dos evangélicos nos templos em relação ao ano de 2016. No entanto, esse dado não pode, novamente, ser analisado isoladamente como evidência do declínio da religião no Brasil. Em primeiro lugar, porque enfrentamos a pandemia da covid-19, cuja medida fundamental foi o isolamento social, fazendo com  que as igrejas reinventassem suas práticas de culto por meio da internet. Em paralelo a isso, vimos surgir o fenômeno dos “des-igrejados” relacionado à crise de confiança nas instituições: fiéis evangélicos que se decepcionaram com suas igrejas e líderes, mas permanecem compartilhando das crenças e adaptando as práticas desse universo individualmente ou em pequenos grupos fora de instituições eclesiásticas. Esse é um fenômeno importante tendo em vista que o Informe Latinobarómetro de 2020 apontou que a Igreja [as igrejas cristãs no seu conjunto] na América Latina em 2000 desfrutava de 77% de confiança da população, mas esta caiu para 58% em 2020.

Deste modo, para uma análise adequada do fenômeno religioso é preciso atentarmos, portanto, às transformações da própria religião a partir dos modos de se experimentar a religião. Isso nos leva, inclusive, à importância de repensar o conceito religião, tarefa esta que a Ciência da Religião tem assumido. A religião é um fenômeno que se situa mais na experiência do sagrado do que na instituição religiosa. Com isso, não devemos confundir um possível enfraquecimento do cristianismo com o declínio da religião, como podemos concluir do estudo do Pew Research. Álvaro Dias parece ter entendido isso em seu outro texto, embora essa questão não tenha sido suficientemente explorada.

Referências

Paula Monteiro, “Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso.” in Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 32 (1), 167-183, 2012.

Cláudio Ribeiro, “Dupla e múltipla pertença religiosa no Brasil”, in Estudos de Religião, São Paulo, v. 32, n.3, 2018, p. 93-115.

 

 

Maria Angélica Martins é socióloga e mestra em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. Pesquisa a relação entre fenómeno religioso e política com ênfase para o protestantismo histórico e o neocalvinismo holandês.

 

KAICIID reúne líderes religiosos e comunitários para promover paz em Cabo Delgado

Encontro em Pemba

KAICIID reúne líderes religiosos e comunitários para promover paz em Cabo Delgado novidade

O Centro Internacional de Diálogo – KAICIID, com sede em Lisboa, dinamizou no final da semana passada um encontro de “sensibilização inter-religiosa” em Pemba (capital da província de Cabo Delgado, Moçambique), no qual reuniu membros das comunidades locais, líderes religiosos e organizações da sociedade civil. Deste encontro saíram compromissos a curto e longo prazo de promoção do “diálogo entre líderes religiosos e decisores políticos como ferramenta de prevenção de conflitos” naquela região.

O “caso” frei Bernardo de Vasconcelos: 100 anos da sua vocação monacal e uma carta

O “caso” frei Bernardo de Vasconcelos: 100 anos da sua vocação monacal e uma carta novidade

Vem isto a propósito de uma efeméride que concerne o jovem Frei Bernardo de Vasconcelos (1902-1932), monge poeta a quem os colegas de Coimbra amavam chamar “o Bernardo do Marvão”, nome pelo qual era conhecido nas vestes de bardo, natural de São Romão do Corgo, em Celorico de Basto, Arquidiocese de Braga, que a Igreja declarou Venerável e que, se Deus quiser (e quando quiser), será beatificado e canonizado. (Pe Mário Rui de Oliveira)

Apoie o 7MARGENS e desconte o seu donativo no IRS ou no IRC

Breves

 

“Em cada oportunidade, estás tu”

Ajuda em Ação lança campanha para promover projetos de educação e emprego

“Em cada oportunidade, estás tu” é o mote da nova campanha de Natal da fundação Ajuda em Ação, que apela a que todos os portugueses ofereçam “de presente” uma oportunidade a quem, devido ao seu contexto de vulnerabilidade social, nunca a alcançou. Os donativos recebidos revertem para apoiar os programas de educação, empregabilidade jovem e empreendedorismo feminino da organização.

Agenda

Fale connosco

Autores

 

Pin It on Pinterest

Share This