A república do ludopédio

| 9 Jun 2021

Os ingleses inventaram o ludopédio (futebol) e continuam a driblar-nos com ele. Mas isso só é possível porque persistimos em ser provincianos. Deslumbramo-nos com tudo o que vem de fora e nem sequer nos damos ao respeito.

Futebol

“Estamos numa espécie de república não das bananas mas do futebol, onde este desporto continua a condicionar os governos e com o olho no negócio em vez de se preocuparem com a segurança e a saúde públicas. Foto © Jannik Skorna / Unsplash

 

Primeiro foram os festejos do Sporting campeão nacional de futebol, mas condescendeu-se porque o clube não ganhava um campeonato há dezanove anos. Foi o que se viu. Depois foi a final da Champions no Porto, e voltou a condescender-se porque eram estrangeiros, queríamos fazer o favor à UEFA e atrair turistas estrangeiros durante o Verão. Foi o que se viu.

Pelo meio a Direção-Geral de Saúde recusou o pedido para que a final do campeonato de râguebi tivesse 500 adeptos mas um impacto mediático irrelevante. Porém, o mesmo organismo nada disse sobre os 15000 adeptos presentes na final da Liga dos Campeões, que é um evento global.

Na sua cruzada demagógica contra a capital, Rui Moreira criticou a Câmara Municipal de Lisboa e o Governo pelo que correu mal nos festejos do clube lisboeta, mas depois acabou por querer justificar as cenas lamentáveis ocorridas na Ribeira do Porto, que foi ainda muito pior, com a agravante de querer promover os festejos populares do S. João como se não houvesse pandemia. No fundo é apenas mais um político a surfar a onda oportunista como os outros.

Face à crítica velada do Presidente da República, António Costa procurou separar os ingleses que chegaram uns dias antes (a que chamou “turistas”) dos que vieram no próprio dia, apenas para assistir ao jogo (a que chamou “adeptos”). Já Pinto da Costa, usando e abusando da sua habitual hipocrisia, veio pedir a demissão do primeiro-ministro porque não pode ter público no pavilhão de basquetebol e na linha de pressão intolerável que a Liga (LPFP) e os principais clubes têm exercido continuamente sobre o Governo para permitir o regresso aos estádios em plena pandemia e sem a população ter atingido ainda a imunidade de grupo. Pinto da Costa perdeu a noção de quem é, mas com a habilidade e chico-espertice que se lhe reconhece tentou desviar as atenções do recrudescimento da pandemia na sua casa.

No fundo estamos numa espécie de república não das bananas mas do futebol, onde este desporto continua a condicionar os governos e com o olho no negócio em vez de se preocuparem com a segurança e a saúde públicas. A tentativa recente e felizmente frustrada da criação duma Superliga Europeia por parte dos clubes milionários no desprezo total pelas populações e pelo próprio desporto revelam o imenso poder que o futebol assumiu.

Tirando Rui Rio – honra lhe seja feita – quase não há um político que não tente insinuar-se junto de um dos maiores clubes para assegurar visibilidade pública nas televisões ou aparecer na tribuna de honra para capitalizar popularidade junto dos adeptos. Os salões nobres das autarquias viraram salas de recepção dos que ganham alguma medalha no desporto, e até Marcelo Rebelo de Sousa exagera nos encómios hiperbólicos a quem quer que ganhe quaisquer competições desportivas. Só falta as de carica ou chinquilho.

Portugal curvou-se mais uma vez aos interesses estrangeiros, ao atribuir em diploma isenção de IRC e IRS às estruturas e cidadãos estrangeiros envolvidos na final da Liga dos Campeões. O constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia considera-o inconstitucional e descreve a referida isenção “vexatório daquilo que há de mais elementar nos valores que subjazem a um Estado de Direito que se queira dar ao respeito, e que sobretudo não se queira ‘agachar’ a interesses espúrios”. Em exposição à provedora de Justiça pede que solicite ao Tribunal Constitucional a fiscalização sucessiva abstrata da constitucionalidade do diploma, pois em seu entender “terão sido violados os princípios constitucionais do Estado de Direito, da igualdade, da proporcionalidade, da constitucionalidade, da generalidade, da abstração e da prospectividade das leis.”

Mas o pior de tudo é que o país acabou penalizado por facilitar a vida à UEFA e aos clubes ingleses que disputaram a final, uma vez que, cinco dias volvidos, Londres retirou o país da “lista verde”. Já se conhecia o velho cinismo britânico que nos voltou a trair pois o evento trouxe a Portugal mais de 16 mil adeptos ingleses, parte dos quais se envolveram em desacatos e desrespeitaram as normas de segurança sanitária no País.

Até dá vontade de tomar como justa a crítica dos que consideram que o Reino Unido nos abriu o “corredor verde” apenas para o Chelsea e o City poderem jogar a sua final, que mais ninguém podia ou queria receber, e puxou-nos o tapete logo a seguir, não se tratando, portanto, duma decisão sanitária mas política, até porque o espertalhão do Boris quer que os ingleses gastem o dinheiro em casa e ajudem a economia doméstica.

Os ingleses inventaram o ludopédio (futebol) e continuam a driblar-nos com ele. Mas isso só é possível porque continuamos a ser provincianos. Deslumbramo-nos com tudo o que vem de fora e nem sequer nos damos ao respeito.

 

José Brissos-Lino é director do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona, coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo e director da revista teológica Ad Aeternum; texto publicado também na página digital da revista Visão.

 

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