“Os livros fizeram a Europa”, disse Tolentino Mendonça, ao receber o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva. Guterres interpelou o bibliotecário da Santa Sé através de vídeo e o cardeal respondeu com três palavras. E disse que os livros são “telescópios e sondas apontados ao futuro.”

Guilherme d’Oliveira Martins, da Europa Nostra-Portugal, Maria Calado, presidente do Centro Nacional de Cultura, e a ministra Graça Fonseca, depois de entregarem o Prémio ao cardeal Tolentino. Foto captada da transmissão em vídeo.
E como responde o cardeal Tolentino Mendonça, bibliotecário e arquivista da Santa Sé, à pergunta do secretário-geral das Nações Unidas? António Guterres questionara, na mensagem por vídeo: “De que modo pode a cultura contribuir para a amizade social, de que o Papa fala na encíclica Fratelli Tutti?”
O secretário-geral foi uma das pessoas que interveio na sessão de entrega, ao cardeal português, do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural 2020, que decorreu ao fim do dia de sexta-feira, 23, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
A distinção, disse Guterres, é um “justo reconhecimento para um dos mais destacados homens de cultura” de Portugal e na actualidade, que tem reunido “as facetas de homem de fé, homem da cultura e de conhecedor da realidade humana”. Uma voz “singular” que chega a “sensibilidades muito distintas”, afirmou.
O cardeal respondeu à pergunta de Guterres com “três palavras: curiosidade, encontro e futuro. A cultura “ensina-nos o interesse pelos outros” e sobre a “importância vital da curiosidade”, afirmou, citando o jesuíta Matteo Ricci, evangelizador da China: “O meu amigo é a outra metade de mim.”
“Quer a amizade social quer a cultura são verdadeiramente a celebração de um encontro inesperado, diverso, necessariamente dialógico”, acrescentou, acerca da segunda palavra. Uma dimensão que traz “a capacidade do espanto, a capacidade da escuta, o tempo necessário para tornar precioso o próprio encontro”.
Também “na amizade social e na cultura percebemos que há um futuro para cada um de nós que é indissociável da relação com o outro”, como reflecte a expressão do Papa de que “estamos todos no mesmo barco”. “Tenho sempre a noção clara de que sou, do princípio da minha vida até ao fim, uma obra dos outros; sem esse encontro com a alteridade, eu não seria, eu não pensaria, eu não escreveria”, disse ainda, agradecendo as palavras que os diferentes intervenientes lhe haviam dirigido.
Na sessão, interveio também o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que, numa mensagem em vídeo, se referiu ao premiado como “património cultural imaterial” português. A ministra da Cultura, Graça Fonseca, falou do “ofício de paciência de Tolentino” como sendo “sempre um ofício cantante e, como gosta de dizer, um ofício incerto, fundamentalmente criador do divino no humano”. Tolentino é alguém que, com a universalidade de “poeta, erudito, homem da cultura, mensageiro de valores”, cumpre o “sentido essencial” da palavra “católico”, afirmou.
A sérvia Sneska Quaedvlieg-Mihailović, secretária-geral da Europa Nostra, instituição associada ao Centro Nacional de Cultura e ao Clube Português de Imprensa na atribuição do prémio, notou não ser uma “mera coincidência a celebração dos 225 anos de Beethoven e a última encíclica do Papa Francisco”. E Isabel Mota, presidente da Gulbenkian, anunciou que, em 2021, a Fundação exporá dois desenhos de Boticelli, guardados na Biblioteca do Vaticano, e que são alusivos à Divina Comédia, nos 700 anos da morte do poeta Dante Alighieri.
“O livro já não é a grande metáfora”

Tolentino Mendonça falou de Helena Vaz da Silva, que dá nome ao prémio, como alguém que conheceu “por interposta pessoa”, o seu marido, Alberto. A amizade que com ele manteve foi uma forma de se avizinhar de Helena, “olhando-a através da mais poderosa das lentes, que é aquela do amor”.
“Estamos, diz-se, a chegar ao fim da era do livro”, que “já não é a grande metáfora”, afirmou depois o cardeal Tolentino. “Quer como artefactos quer como transmissores de uma determinada conceptualização moral da vida”, os livros já não representam “o principal foco de energia da nossa civilização”, como referia George Steiner, já da década de 1960.
“Nessa função o livro foi substituído pelo écran”, diante do qual “cada um de nós passa hoje mais tempo” do que diante de um livro. “E são múltiplos os écrans que massivamente se disseminam nos nossos quotidianos e os moldam, veiculando assim o impacto da revolução digital na nossa época e a interferência sempre maior da tecnologia na comunicação humana.” Mas esse foi o lugar, afirmou Tolentino Mendonça, “que por séculos esteve reservado à página e ao texto manuscrito ou impresso”.
O cardeal referiu ainda haver quem pense que mais do que de “crepúsculo” se deveria falar de “transformação”: a forma actual do livro em papel “é uma etapa de uma história mais longa, que começou pelos textos gravados em pedras, em tábuas de argila” e que “continuará o seu caminho”. Mas, “por mais variações que se introduzam, o que teremos entre as mãos continuará a ser um livro”.
As múltiplas invenções da civilização que inventou o livro

Por essa razão, Tolentino Mendonça defendeu o livro e a civilização que o criou: “Não podemos esquecer que a civilização que inventou o livro tal como até aqui o conhecemos inventou também as condições requeridas para a sua leitura e que essas nos modelaram antropologicamente durante séculos e que essas constituem um património cultural que precisamos de preservar. Pois quem inventou o livro inventou o silêncio da leitura, inventou essa forma íntima de temporalidade que torna o encontro com o livro indissociável do encontro connosco próprios.”
Esta mesma civilização, acrescentou, “inventou a atenção, a aventura do conhecimento elaborada a partir de certas premissas e a curiosidade”, bem como “um regime social onde a atividade intelectual era admitida”, um regime que, além do mais, “libertou o homem, revelando-lhe a sua dignidade”.
Foi também a civilização do livro que “inventou o direito universal à alfabetização e multiplicou as comunidades de leitores”; “o indivíduo e a vida privada; “a confiança na consistência da linguagem e as bibliotecas”; “os salões literários, os cafés e as praças como lugares de debate”; “os sistemas críticos e hermenêuticos que garantem não só a legibilidade dos livros mas a compreensão do mundo”; “as escolas monacais e a ideia moderna de universidade”; “o humanismo e a expressão de liberdade, e a liberdade de expressão, que é sempre inseparável da liberdade de ser”.
Neste elogio à civilização do livro e ao que ela possibilitou, o autor de A Noite Abre Meus Olhos afirmou ainda que esse objecto permitiu o “desenvolvimento das suas possibilidades expressivas, cognitivas e de imaginação”. E acrescentou: “Quem inventou o livro inventou uma certa forma de produzir história e inventou também a figura de leitor que ainda somos. O património humano, cultural e espiritual que o livro representa é por isso incalculável. O que o livro põe em jogo é muito mais do que o livro. Não nos podemos desfazer dele como se fosse um arcaico vestígio destinado a ser progressivamente desactivado.”
Os livros são mapas e telescópios
Nesta fase de transição civilizacional deve perguntar-se, por isso, o que se pode fazer “para valorizar este extraordinário património e para que o livro continue a inspirar-nos na tarefa da construção da nossa humanidade”, porque os livros “não nos tornam só leitores, tornam-nos também cidadãos”.
“A história da Europa é inseparável dos livros que constituíram o seu modo de criar cultura, ciência, espiritualidade e pensamento até aos nossos dias”, afirmou o cardeal Tolentino, recordando os grandes autores que fizeram esta história europeia do livro e da cultura.
E referindo que, “em momentos especialmente duros da história europeia aconteceram algumas das declarações de amor mais belas aos livros”, recordou quatro: Thomas Mann que quis ler e comentar o Dom Quixote, na sua viagem para o exílio nos Estados Unidos; a judia holandesa Etty Hillesum, autora de um Diário, que quando foi levada para Auschwitz, transportava apenas consigo a Bíblia e os poemas de Rainer Maria Rilke; o pintor polaco Józef Czapski que, num campo do Gulag soviético, na Sibéria, fazia palestras sobre Proust; ou a história, contada pelo teólogo Romano Guardini, do capelão militar que, numa situação desesperada da Segunda Guerra, sentiu que nada mais tinha a dizer e decidiu rasgar e dar a cada um dos soldados com quem estava, uma folha da única coisa que tinha consigo: o Novo Testamento.
“Os livros fizeram a Europa”, conclui o autor de A Leitura Infinita. “Protejamos o património cultural que os livros representam. Eles são mapas para decifrar de onde viemos, mas são também telescópios e sondas apontados ao futuro.”
(O vídeo da sessão completa pode ser visto a seguir)